quinta-feira, 19 de agosto de 2010

PRÉ-HISTÓRIA

Os voluntários entraram no hangar de lançamento dez minutos antes do tempo estabelecido. O ar gelado percorria os grandes espaços daquela estação avançada, instalada, por razões óbvias, na solidão dos cumes, quase entre nuvens. Em seus trajes especiais, pareciam nebulosas de partículas eletrônicas, aparições vaporosas no crepúsculo. Suas cabeças ainda descobertas projetavam-se discretamente na camuflagem evanescente, sugerindo naquela translucidez uma inexplicável potência hierática. Dez minutos. O que fazer com esse lapso de tempo, quando estavam prestes a transgredir percepções lineares? Quanto não será possível dizer em dez minutos? E quanto silêncio se tem inscrito no tecido dos milênios? O ar gelado queimava as entranhas, mas havia naquela ardência uma pressuposição de mundos, um afã de alteridades. Na breve intersecção temporal, como reconstituir uma existência cuja totalidade transfixou-se num único instante, o eterno presente? Súbito, ouviram o chamado; findara-se o tempo. Pouco depois, a esfera elevou-se no ar e, delicadamente, desapareceu, como se nunca existisse, deixando atrás de si resíduos de narrativas inacabadas e a luz silenciosa do fim de tarde.


FERNÃO GOMES

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

ZEITGEIST

No baile de máscaras os pássaros translúcidos apareceram, repentinamente. Revoaram, em silêncio, descrevendo trajetos irregulares sobre os convidados que os observavam, também em silêncio. Sua presença causou entontecimentos e enjoos nas mulheres e deixou um silvo agudo, quase imperceptível, na sensibilidade confusa dos homens. Os mordomos e as camareiras, que não foram afetados pela aparição daquelas criaturas espectrais, distribuíram calmantes, analgésicos e anti-espasmódicos para os mascarados à beira de surtos de histeria e medo. Passado o mal-estar, que os amontoou sofregamente em filas desordenadas às portas dos banheiros, retornaram à diversão. Aos poucos, ao som da música hipnótica, foram ocupando seus lugares no salão e, minutos depois, estavam completamente entregues aos delírios de seu hedonismo incurável.



P.S.: Durante a aparição das criaturas espectrais, os mascarados, extáticos, nem se deram conta de que um dos convidados, apenas um, horrorizado com o que presenciava, deixou o recinto aos gritos e lançou-se janela afora, consumindo-se naquele precipício íngreme e profundo.



FERNÃO GOMES

domingo, 8 de agosto de 2010

SOCIEDADE RANDÔMICA

Lamento, querida, mas houve um equívoco de sua parte em relação a uma palavra que na verdade eu nunca disse, mas a ouvi daquela sua amiga que veio ter comigo e, a certa altura de nossa conversação, disse-me o seguinte, minha cara, vou contar um segredo, eu me encontrei com o marido dela, naquela mesma noite, após o jantar, vivemos momentos inesquecíveis, nunca sairão de minha memória, ele é realmente um homem maravilhoso, não sei como é capaz de suportar aquela mulher, não sei como consegue viver com ela, em certo momento, diante de minhas inquietudes, ele pôs os dedos em meus lábios, olhou em meus olhos e disse, delicadamente, querida, não quero ver você banhada em lágrimas, mas minha condição limita nossos encontros, não sei até onde suportaríamos as limitações a que ficaríamos sujeitos, porque minha mulher me persegue, não me deixa em paz e usa o ciúme como revelador da efemeridade de meus sentimentos, imagine que, ainda hoje, antes do jantar, ela me disse, não se atreva, não se atreva que eu faço um escândalo, não revele ao mundo que seu nome é veleidade.

FERNÃO GOMES

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

ÍNDIOS

Instalados em acampamentos improvisados à margem da rodovia federal, os índios recebiam visitas de curiosos, de viajantes, de vendedores que lhes deixavam lembranças e presentes: uísque, tênis, antidepressivos, camisetas promocionais, cocaína, antenas parabólicas, novidades tecnológicas. Alguns deles achavam os visitantes muito engraçados e chegavam a dar piruetas de felicidade; outros entravam pela mata, cambaleando e sem destino; outros até saltavam à frente dos carros e dos caminhões, que passavam pela rodovia, em alta velocidade.


FERNÃO GOMES