Eu queria cometer um crime e ser condenado por ele. Mas não apenas um crime sórdido, hediondo e sangrento, como costumam ser os crimes dos assassinos em série, dotados de mentes artisticamente complexas e corações indevassáveis, que engendram e executam nas trevas seus ódios ordinários e suas vinganças excepcionais. Não; esses crimes são desafortunadamente pontuais e convergentes. Eu queria um crime com outras proporções, um crime intenso o bastante para calcinar as inocências; contundente o bastante para devastar as ferocidades; um crime superlativamente extremo; um crime-espetáculo, representação, que expusesse a mais obscena e insuportável humanidade; um crime que trouxesse aos olhos aquilo de que mais as pessoas se escondem; que fosse cometido não às escondidas, mas à luz do dia, à luz mais ostensiva do dia, para que todos pudessem de algum modo protagonizá-lo comigo. Certamente, minha condenação seria assim: “O prestidigitador é culpado e será expulso da polis. Ele nos iludiu, ele mentiu para nós.” Em seguida, eu seria encerrado numa cela incrivelmente hermética, nas profundezas da terra, até o final dos tempos. Enquanto isso, os juízes voltariam a contemplar as oscilações das próprias sombras, vagamente projetadas na parede da caverna.
FERNÃO GOMES