quinta-feira, 30 de setembro de 2010

HERÓI

Eu queria cometer um crime e ser condenado por ele. Mas não apenas um crime sórdido, hediondo e sangrento, como costumam ser os crimes dos assassinos em série, dotados de mentes artisticamente complexas e corações indevassáveis, que engendram e executam nas trevas seus ódios ordinários e suas vinganças excepcionais. Não; esses crimes são desafortunadamente pontuais e convergentes. Eu queria um crime com outras proporções, um crime intenso o bastante para calcinar as inocências; contundente o bastante para devastar as ferocidades; um crime superlativamente extremo; um crime-espetáculo, representação, que expusesse a mais obscena e insuportável humanidade; um crime que trouxesse aos olhos aquilo de que mais as pessoas se escondem; que fosse cometido não às escondidas, mas à luz do dia, à luz mais ostensiva do dia, para que todos pudessem de algum modo protagonizá-lo comigo. Certamente, minha condenação seria assim: “O prestidigitador é culpado e será expulso da polis. Ele nos iludiu, ele mentiu para nós.” Em seguida, eu seria encerrado numa cela incrivelmente hermética, nas profundezas da terra, até o final dos tempos. Enquanto isso, os juízes voltariam a contemplar as oscilações das próprias sombras, vagamente projetadas na parede da caverna.



 
FERNÃO  GOMES

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

PARA SEMPRE

Eu estava de joelhos diante do grande altar, quando senti um tremor em meu coração. Cobri-me com o capuz e fiquei quieto, esperando por uma oscilação tênue no ar rarefeito. Súbito, aquele perfume ultra-azul, hipnótico como as flores de Havona, instalou-se nos vazios da catedral: “É estranho o sentimento de revolta que toma posse de meu coração, toda vez que nos encontramos.” Levantei-me e, ao contemplá-la de frente, confesso que fiz um esforço tremendo para não cair outra vez aos seus pés, seduzido por aquela imaterialidade elétrica que parecia esplender-se em todas as direções, mas inexplicavelmente contida por uma transmecânica que tornava possível envolvê-la em meus braços, durante séculos. “São defesas forjadas por mim mesma, eu sei. Eu te amo. Mas não posso; simplesmente não posso.” Era um fim de tarde e eu fiquei parado, sozinho entre as capelas radiantes, transido na fronteira dos vazios extensos que se abriam monstruosos diante de mim. Ela desapareceu, dissolvendo-se entre os arcos ogivais da grande nave, não sei como fez aquilo. Mas deixou em meus lábios um chamado, um sinal inscrito em mim mesmo, uma distinção que há muito ela também leva consigo.   


FERNÃO GOMES

sábado, 4 de setembro de 2010

AGNÈS SOREL

Ela entra no quarto para despir-se, mas sua nudez não se revelará assim, de um instante a outro, como parco objeto que se abre repentinamente sem as essenciais oscilações da expectativa ou como gesto vazio de quem já se esqueceu do esplendor do rito. Não; absolutamente não. Ela descobre o seio com o rigor calculado de quem transita em zonas fronteiriças – nem a transcendência da mãe, nem a obscenidade da amante. Ao livrar-se do vestido e abandoná-lo no chão, deixa transparecer, para si mesma, um vago vestígio de pudor, mas é possível que pudor, neste caso, seja apenas um artifício. A verdade é que a essa altura a máxima distância que nos separa de suas entranhas é a última peça. Vamos então tirá-la, mas não faremos isso pelo texto, não seria amigo suprimir a possibilidade de o leitor elaborar ele próprio esse deleite. Deixamos aqui uma lacuna, um interstício, e muitos mistérios. Ela agora está deitada de bruços, completamente nua, balançando as pernas entreabertas, vagamente entretida com anotações de um diário – eu te odeio, eu te amo; eu te odeio, eu te amo; eu te odeio, eu te amo. Logo, o rei entrará por aquela porta.

FERNÃO  GOMES