quarta-feira, 24 de novembro de 2010

HOTEL NACIONAL

“Sua presença é uma onda, uma perturbação para os meus sentidos. Sua presença é tão simples e inexplicável como uma mulher dentro de um homem. Mas sua presença não é uma inovação em mim: ela me dá mais de tudo quanto já tenho e sinto, ela me dá mais do mesmo. Sua presença é repetição; seu olhar percorrendo meu corpo é repetição; sua ingenuidade simulada é repetição; seu sentimento amoroso, constrangedor e excessivamente teatralizado, é repetição; o sexo entre nós é repetição. Mesmo assim eu desejo todas essas repetições, bem como os intervalos sugeridos entre elas, porque neles posso descobrir esconderijos, porque neles posso ser outra, posso ser outras. Sua presença em minha vida é um fantasma percorrendo corredores sombrios. Eu desisti da ilusão de ser feliz; não tenho mais esse tipo de frivolidade. O próprio amor tornou-se um horror social: nós fizemos dele um monstro. Nunca mais se aproxime de mim, até a semana que vem.” Ela se levantou da poltrona e deixou o quarto. Enquanto isso, ele ficou sentado na beira da cama, olhando quieto a lâmina de luz que penetrava o ambiente pela fissura da porta que ela não fechara completamente.


FERNÃO  GOMES


sábado, 13 de novembro de 2010

DÚVIDA

Ela subiu a escadaria e entrou na grande catedral. Sentiu-se aliviada ao transpor a passagem que a apartava do mundo dos homens, mas também surpreendeu-se constrangida diante da escala descomunal. Havia poucas pessoas pelos bancos, mas ela escolheu, criteriosamente, um lugar e acomodou-se. “Não vim agradecer, não vim em busca de bênção ou perdão: há muito meu repertório não é mais o mesmo. Vim ao encontro de um interlocutor, apresentar-me a mim mesma como um problema, porque a essa altura das coisas, somadas todas as representações, inclusive os espetáculos frustrados, não estou certa de que tenha restado muito das ilusões intelectuais, que parecem quedar-se, afinal, tartamudas e anafóricas. Tantos anos; títulos universitários; reconhecimento profissional; e tenho as mãos vazias. Depois de tudo, talvez pareça cinismo, senão hipocrisia, reduzir uma existência a um paradoxo poético. E é bem possível que não seja o único, porque também não sei o que dizer a respeito das religiões que deixaram em mim uma metafísica fraturada e uma explícita incompetência espiritual: não sei o que dizer de um deus ou de deuses, mas erigi altares que agora se desmoronam. Sobre bens materiais, obtive o bastante para o grande jogo das vaidades, mas como falar de posses, se me sinto escorrer como areia entre dedos? Como falar de posses, se o amor converteu-se numa construção irônica, num lugar cheio de cicatrizes? O que afinal restou de tudo?” Contemplou longamente os arcos ogivais da grande nave; sentiu-se sozinha como um pináculo. Levantou-se, retornou pelo mesmo corredor e, quando alcançou o portal, o limite entre os mundos, estremeceu: as pessoas, os edifícios, os veículos, as árvores – tudo havia desaparecido.

FERNÃO  GOMES

domingo, 7 de novembro de 2010

LUGAR COMUM

Na lan house as amigas estavam na mesma baia e partilhavam conteúdos. “É esse aqui”, disse uma delas, tocando levemente o monitor, que produziu ondulações, do centro para a circunferência. Entreolharam-se, incrédulas, olhos admirados. A garota tocou o monitor outras vezes e ali ficaram ambas, sob o encantamento das ondas, até perceberem que a tela era suscetível a ponto de penetrá-la. Uma delas forçou o dedo e, subitamente, quase toda a mão desapareceu dentro do monitor. “Fulana, que é isso?”, disse a amiga, enquanto a outra permanecia em silêncio, girando a mão submersa. Tentou puxá-la, mas a mão estava presa e, quanto mais força fazia, algo a sequestrava para dentro da tela. Respirou fundo e deu um impulso, mas, ao invés de sair, todo o seu braço entrou pelo monitor, que o absorveu até os ombros. Ela tentava voltar, apoiava-se com os pés no chão e na quina da mesa, enquanto com a outra mão segurava nas bordas escuras da tela. “Que é isso, Fulana? Para com essa brincadeira. Não tem graça nenhuma.” Mas a Fulana mal conseguia ouvir a amiga, lutava para não ser engolida, expressando nos olhos o mesmo horror da Medusa, de Caravaggio. “Por favor, alguém pode ajudar?”, pedia a amiga, enquanto tentava trazer a garota de volta, puxando-a pela cintura. Os usuários olhavam, mas voltavam aos monitores, em silêncio. Um deles levantou-se e tentou segurar a garota, mas não teve forças: ela foi puxada até a cintura e, num golpe fatal, todo o corpo desapareceu sob a tela do monitor. Houve um momento de silêncio interrompido apenas pela chegada do gerente: “Com licença. Não se preocupe. O que acabou de acontecer não é comum, mas é plausível.” O rapaz retornou à sua baia. A amiga sentou-se e permaneceu imóvel, quieta. Levou algum tempo para assimilar o fenômeno, mas depois desse intervalo disse: “Preciso ver meus emails.” O gerente respondeu: “Fique tranquila. Por conta desse incidente, a primeira hora será grátis, com direito a um refrigerante. Vou reiniciar o computador. Deseja mais alguma coisa?” “Não, obrigada.” Observou o computador abrir a área de trabalho e, ainda em silêncio, sentou-se com o refrigerante nas mãos e atualizou sua correspondência.



FERNÃO GOMES