terça-feira, 28 de dezembro de 2010

SEM TÍTULO

Olá, pessoal. Gostaria, primeiro, de agradecer a todos vocês pelas visitas ao Zona Fronteiriça, ao longo de 2010, pela leitura dos textos e pelos comentários enviados, quer seja no próprio blog, quer por emails ou mesmo pessoalmente. Foram todos muito amáveis e generosos. Em 2011, vou continuar com a publicação das micro-narrativas, uma a cada semana, mais ou menos, pois fazem parte de um projeto literário. Também serão publicados outros trabalhos que, neste momento, estão em fase de elaboração. Por enquanto, deixo outra narrativa (a última de 2010) que ainda não tem título. Dessa vez, decidi propor um pequeno desafio àqueles que, pacienciosamente, visitam o Zona. Leiam o texto e elaborem um título para ele. Um deles figurará como definitivo e será exibido no lugar do "sem título". Trata-se de uma proposta simples através da qual pretendo saber como estão lendo os textos publicados no Zona. Uma vez mais, agradeço sua generosidade e desejo um 2011 excepcional a todos nós. Abraços carinhosos e boa leitura. 



 Muito tempo se passara desde que ele tivera de deixar o país. Lembrava-se perfeitamente de toda a família, de todos aqueles com quem convivera, dos rostos de cada um deles: conservara-os em si com um realismo vívido só comparável, como ele próprio dizia, aos pintores holandeses do século XVII. Compusera quadros com ruínas de seu passado; sobrevivera aos anos de exílio em nome dessas imagens; suportara as lacerações da distância e da solidão, recriando, dia a dia, a nitidez de cada olhar, de cada sorriso, urdidos no fluir caudaloso dos anos. Mas os tempos de militarismos latino-americanos e suas ferocidades foram aplacados e deram lugar a outras composições sociais que o trouxeram de volta à terra onde nascera. No aeroporto, antes de embarcar, comprou brinquedos ao sobrinho, com quem passara ludicamente os últimos dias daqueles anos. Ao encontrá-lo, viu diante de si um rapaz de dezoito anos, que o recebeu amavelmente, acompanhado de sua namorada. Ele ficou parado, em silêncio, segurando os brinquedos que acabara de comprar, enquanto sentia as lágrimas escorrerem pelo rosto.

FERNÃO GOMES

sábado, 18 de dezembro de 2010

SONATA ANCESTRAL

O taxista atrita as mãos, aproximas-as da boca, como se compusesse uma prece, bafeja nelas e as esconde nos bolsos do casaco. Olha de relance no espelho retrovisor: no banco traseiro, o passageiro solitário permanece imóvel, olhando nostalgicamente, pelo vidro molhado, as luzes do semáforo, refletidas no asfalto. O taxista liga o rádio e, por alguns instantes, a música de Moby[1] traz a chuva para dentro do carro. Uma luz intensa, possivelmente do poste mais próximo, projeta-se no veículo e chega a ofuscar os efeitos do semáforo no asfalto. O taxista curva-se sobre o volante e olha para cima, protegendo os olhos, mas sente no corpo um cansaço excessivo e, sonolento, acomoda-se no banco e adormece. No rádio, que por um instante perdera a sintonia, continua a mesma canção, enquanto as cores do semáforo alternam-se no asfalto e no banco traseiro, que agora está vazio.
 

FERNÃO  GOMES

[1] Whispering Wind.

domingo, 12 de dezembro de 2010

PÉROLA

Tantas vezes meus olhos percorreram suas formas sem que eu tivesse o menor vislumbre do que agora vejo, sem que eu sequer compreendesse o assombro que desde o primeiro instante fizera de mim um espectro entre tantos que contemplam sua imagem. No entanto, na pungente tarefa da contemplação, sinto-me eu mesmo trespassado pelo poder inominável de seu olhar, feito um narciso sem defesas, devassado diante da língua intraduzível que desliza em seus lábios entreabertos, pelos quais se insinuam promessas e precipícios. E dos desvios inexplicáveis da beleza, que simula ilusões tanto quanto se enreda com ironias, surge, no campo nebuloso de sua imagem, o singular pingente, fonte de inquietudes e abismo em cujas profundezas todo olhar se consome e toda luz se extingue.

para J. Vermeer

FERNÃO GOMES

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

VISÃO


Um vulto atravessou o cruzamento de corredores e, antes que desaparecesse atrás da grande gôndola de livros, pareceu olhar em minha direção. Era uma biblioteca de vastidões, corredores e perspectivas invencíveis, andares hipnóticos que se arrojavam às nuvens, trespassados por escadas saídas das visões de Escher. Em meio ao silêncio das estranhas criaturas que se moviam por aquelas amplidões geladas, saí em busca do vulto e deparei-me com uma porta entreaberta. Empurrei-a com os pés, levemente, e entrei. “Fernão Gomes: por que está me seguindo?” Ela estava bem acomodada numa poltrona, vestido longo, pernas cruzadas. A fumaça do cigarro ondulava, finíssima, à luz da luminária disposta no criado-mudo. “Se você me deseja, devo dizer, sem cerimônias, que estou somente amando a barata. E é um amor infernal.” “Mas você não é quem antes me pareceu ser”, respondi. “Nem se parece com ela.” “Nada em mim era como aquilo que você conheceu. Eu me pareço com as coisas que invento, com as coisas que ninguém vê. Você sabe realmente para o que está olhando?” De repente, dezenas de Clarices de idades diferentes estavam em pé, dispostas ao redor, olhando em minha direção. Contemplei-as por um instante, mas fui interrompido pela pós-imagem dela: “Você também morde a própria cauda. Terá o seu esplendor.” Súbito, tudo ao meu redor converteu-se em trevas e eu senti na ponta dos dedos a lombada do livro que segurava, quando seu vulto primeiro atravessou o corredor. Eu voltara ao mesmo lugar ou então nunca dali saíra. Deixei o livro e, sentindo frio, afastei-me pelo corredor e fui me dissolvendo na perspectiva, como um holograma no fim de tarde.


FERNÃO GOMES