sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

MAQUINARIA

Um rifle semiautomático é uma arma esguia, anatômica, de design atraente cujas curvas prolongam as mãos e os dedos de quem vai usá-la. Pode ser acomodado no pequeno estojo, em concavidades revestidas de veludo, especialmente desbastadas para o encaixe ajustado de suas partes. O modelo que temos diante de nós é destinado, afirmam os fabricantes, a práticas desportivas em geral, mas sabemos que podem ser úteis para outros fins. Sua coronha, adaptável ao ombro de ambidestros, é especialmente elaborada com fibra sintética, antideslizante, emoldurada por uma base ou soleira de borracha ventilada. Essa arma, que muitos consideram extraordinária, dispõe de uma mira telescópica com visão noturna e ajuste milimétrico de longo alcance, otimizado por um ponto de mira de fibra óptica vermelha. O projétil, cujo estrago justifica toda essa arquitetura que agora se descreve, é de ponta oca, capaz de penetração e danos jamais vistos. Ele é inserido na câmara, como agora fazemos, porque dispomos de uma arma de disparo único, como costuma ser: um tiro, um acerto. Contemplamos o alvo, ajustamos a mira e, no momento preciso, acionamos o gatilho: o projétil atravessa o cano flutuante, de alma raiada, passa velocíssimo pelo silenciador, girando e percorrendo o trajeto até atingir o coração de um sujeito que, neste país, jamais conceberia a possibilidade de converter-se num alvo assim como acabamos de convertê-lo. O projétil penetra no corpo e explode em fragmentos, causando dores lancinantes no deputado federal que é lançado ao chão, brutalmente, e lá permanece imóvel e sem respirar. Está morto. Acabamos de alvejá-lo. Ele é apenas o primeiro. 

FERNÃO GOMES

sábado, 19 de fevereiro de 2011

ESPECTROS

Acenderam muitas tochas no terraço solitário e frio. Nada mais havia naquelas vastidões, exceto o vento gelado soprando soberano suas inquietudes intermináveis. Reuniram-se mulheres recém-chegadas dos grandes centros, feridas em confrontos no excepcional teatro de masculinidades. Despregaram máscaras e fantasias; banharam-se, longamente. Depois, em vestes nazarenas, iniciaram os festejos: beberam, cantaram e dançaram, flexíveis, entrelaçando braços e pernas, aproximando vagamente a umidade quente dos lábios. Foi quando os espectros apareceram, conduzindo seus veículos no esplendor das trevas. As mulheres dispuseram pratos e cálices sobre a grande mesa e ali fartaram-se todos no incrível banquete dos espíritos. Um deles disse: “Ouvimos vocês chorarem. Estávamos bem próximos, mas para seus ouvidos tudo era apenas o ruído do vento.” Ao redor da grande mesa o vento diminuiu seus espasmos, quase não havia sinais de suas fantasmagorias. “Vocês não se lembram mais de todas as promessas. Vocês são os seus ancestrais.” “Nós tínhamos a Internet”, interveio uma mulher. E ficaram todos em silêncio no banquete dos espíritos. Quando elas acordaram, os espectros ainda estavam lá. No terraço solitário e frio, nada mais havia, exceto as tochas apagadas, as cadeiras vazias e o vento gelado soprando soberano suas inquietudes intermináveis.

FERNÃO GOMES

sábado, 12 de fevereiro de 2011

SINAIS

Os batimentos cardíacos aumentam, parece que vai explodir, é noite, ele corre pela rua estreita de alguma favela do grande centro, olhando muitas vezes para trás, porque vêm à sua mente, em flashes velocíssimos, imagens confusas daquilo que o faz correr com vigor extraordinário, daquilo que vem logo atrás e se aproxima perigosamente, ele não compreende, não sabe o que é, faz muito frio, o suor escorre por todo o corpo, ele sente arrepios de medo, não consegue pensar, enquanto salta um muro, desce uma escada, vira à direita, atravessa o corredor estreito, vira à esquerda e sai num descampado que conduz a outras habitações, ele está próximo do ponto aonde quer chegar, agora sobe um barranco, usa as mãos pra ganhar impulso, sente a presença de algo acima de sua cabeça, as lágrimas escorrem pelo rosto, o choro silencioso transforma-se em gritos, ele quase arrebenta a porta do barraco, agarra-se à cintura de sua mãe, esconde-se atrás dela, chorando, gritando de medo, começa a sentir formigamentos por todo o corpo, enquanto olha em direção à porta e vê a luz intensa envolvendo a habitação, o pequeno hermes cai de joelhos, dobrado em si mesmo, sentado no próprio calcanhar, arranha o peito aflitivamente como se o rasgasse, o tronco e a cabeça são projetados para trás no momento em que um largo feixe de luz expande-se de seu peito em meio aos gritos estridentes dele e de sua mãe. Curvada sobre o filho, tentando ampará-lo, ela olhou em direção à porta e, no mesmo instante, soube que eles estavam lá.

FERNÃO GOMES

sábado, 5 de fevereiro de 2011

FRONTEIRAS

Nancy lembrou-se do encontro com Hartigan. Deixou o camarim às pressas e alcançou a rua. De repente, uma sensação arrepiou-lhe o corpo: alguém a observava. Voltou-se, e viu apenas sombras. Quase corria, os sapatos chocavam-se contra a neve acumulada nos frisos da calçada. Onde estaria Hartigan? Por engano, entrou numa rua escura, interrompeu os passos e permaneceu cercada pelas trevas. Súbito, um vulto saltou sobre ela, Nancy gritou e se debateu, tentando livrar-se daquelas mãos geladas, mas o assassino agarrou seu pé, ela golpeou a criatura, arrastou-se pela escuridão e percebeu-se subitamente entre prateleiras repletas de livros. Em sua mente formavam-se indagações confusas e sem respostas. “Que lugar é este? Onde está aquele que há pouco saltou sobre mim?” Olhou ao redor e deu-se com o local em completa penumbra. Levantou-se e caminhou, vagarosamente, aguçando os sentidos, olhando entre corredores extensos e prateleiras altíssimas. No balcão, encontrou um folheto sobre a programação cultural da cidade e ficou perplexa: São Paulo. “Meu Deus! Como vim parar aqui? Estou numa biblioteca ou livraria de outro país! Mas como?" Retornou ao ponto original onde primeiro entrara naquele local, mas a criatura estava diante dela, prestes a agarrá-la. Um soco a derrubou no carpete. Entontecida, arrastou-se, de costas, apoiada nos cotovelos, enquanto o vulto se aproximava, ameaçadoramente. Nancy encostou a cabeça na prateleira, sem possibilidade de fuga. No instante em que o assassino levantou o braço para golpeá-la, ouviram-se tiros. O vulto caiu a seus pés e, na perspectiva do corredor, surgiu Hartigan, olhando para a stripper. Pouco depois, antes de deixar aquele lugar, quis saber o que acontecera. Hartigan apontou-lhe o livro de onde saíram e para onde voltariam: Sin City – Frank Miller. “Então sou apenas uma personagem?” - perguntou a si mesma. A vida parecia tão real, mas agora o que lhe restava era a constatação de que ela própria e tudo o que conhecia não passavam de ilusão!? “Como é possível?” – insistiu. “Não sei.” – respondeu Hartigan. “Talvez tudo seja uma inconcebível ficção. Uma ficção dentro de outra.” Enquanto deixavam o lugar, o luminoso do teto espalhava sua luz sobre as fronteiras de todas as ficções.

FERNÃO  GOMES