sexta-feira, 25 de março de 2011

MEMENTO

À luz violeta do crepúsculo, o contorno escuro da abadia recortava o céu como um fantasma imóvel. Acabara de chover, era possível sentir o aroma de terra úmida que circulava pelo ar frio nas penumbras da catedral. Pela janela de uma das torres, o abade observava as pequenas luzes movendo-se devagar no horizonte distante – eram as naves da polícia espacial, que realizava os primeiros movimentos da ronda noturna. Levantou-se, foi ao pequeno oratório, acendeu algumas velas com a luz mortiça de outra e observou o tremeluzir das chamas, longamente. Em seguida, com sopro discreto e curto apagou uma delas e pensou: “Como pode a substância que move as coisas desse mundo ser tão vigorosa e também tão tênue, que se desfaz com um simples suspiro? Tenho feito essa pergunta há anos e não vislumbro uma resposta. Suspeito, porém, que entre esses atributos repouse um delicado ser-não sendo, uma poética inesperada que minha melancolia me impede de perceber e que pode ser constituída de uma surpreendente e absurda simplicidade.” Sentiu uma lágrima descer pelo rosto e, ao invés de enxugá-la, segurou-a no indicador e a contemplou por um instante: “Absurda simplicidade.” Sentiu-se estremecer, os olhos turvaram-se, outras lágrimas perderam-se pelos fios da barba. Entontecido, deitou-se no chão, encolheu braços e pernas, sentindo-se sozinho, mas inexplicavelmente amparado por uma presença que parecia brincar com seus cabelos, como ele sempre esperou que acontecesse.

para Walter M. Miller Jr.

FERNÃO GOMES

segunda-feira, 21 de março de 2011

O TERMINAL

A voz no alto-falante, anunciando o próximo embarque, pôs fim ao constrangimento que se instalara entre os dois. Com as mãos no bolso do casaco, ele encolheu os ombros, protegendo-se da onda de frio que percorria os espaços do terminal: “Não se esconda nessa falsa indiferença. Depois de tudo, parece patético.” Ela ficou quieta, sentindo as palavras ferirem, sentindo nevascas em seu ser inerme. Antes ele marcasse sua carne com a máxima ferocidade, antes ele drenasse seu sangue, dilacerasse seu corpo, levando-a ao paroxismo inconcebível. Preferiria isso, preferiria brutalidades excepcionais, mas não essas palavras que causam danos e o fazem como quem devora o inimigo aos pequenos bocados, sem nunca se satisfazer completamente. “Estamos morrendo aos poucos", ele disse. “Talvez um dia ressuscitemos.” Súbito, apagaram-se as luzes do terminal e, durante alguns decênios, tudo ficou às escuras. Ressuscitar? Não sei o que é isso. Nada sei sobre amar ou morrer. Apenas sobrevivo em minha condição. Só sei o que sinto: dor, trevas, desertos. Acenderam as luzes de emergência, o terminal ficou na penumbra e uma canção triste no alto-falante fazia fundo àquele momento.[1] Ele tentou segurar-lhe o braço, ela esquivou-se. Depois dessa recusa, afastou-se, em silêncio e vagarosamente, em direção à saída. Ela ficou parada, contemplando as cinzas que se desprendiam de seu corpo, formando um rastro de tudo o que restou. No estacionamento, sob chuva e vento frio, ele esperou o ônibus passar, para contemplá-la uma última vez, mas não identificou seu vulto. Ela ainda estava no terminal, encolhida atrás de uma coluna, agarrada à mochila, onde chorou, silenciosamente, até o amanhecer.

FERNÃO GOMES


[1] Beauty from pain – Superchic[k]

sábado, 12 de março de 2011

TECNOLOGIA INTERATIVA 2

Os números do relógio digital brilharam como um quasar intermitente e despertaram a programação sonora das guitarras indianas, como acontecia todos os dias. Ele deslizou a mão sobre a moldura flutuante do aparelho, interrompeu o som do despertador, levantou-se, com dores por todo o corpo, e foi em direção ao banheiro. No espelho, não conseguiu ver os traços do rosto, percebeu linhas indefinidas e imaginou ruínas provocadas por vapores do banho. Na cozinha, o som do rádio atenuou a frieza das simetrias metálicas: bolsa de valores e previsão do tempo. Minutos depois, estava vestido diante do painel eletrônico que programaria as atividades da casa, enquanto estivesse no trabalho. O rosto pálido de uma oriental construiu-se no monitor, iniciando a sequência de comandos a serem executados. Ele desceu pelo elevador, em direção ao estacionamento, e acomodado no veículo digitou o trajeto. O carro flutuou na pista de velocidade moderada, enquanto ele assistia no painel à síntese jornalística do dia anterior. No trabalho, ocupado com tarefas, numa das muitas baias dispostas em perspectiva, atualizou as informações do sistema. De repente, um funcionário vizinho passou por ele e disse: “Você está ótimo, hoje. Está brilhando.” Sem compreender o que acabara de ouvir, foi ao banheiro e, diante do espelho, ficou paralisado, perplexo, olhando fixamente para si mesmo. Quando aconteceu essa mudança? Por isso não fora capaz de ver o próprio rosto no espelho? Seria essa a razão das dores no corpo? Como o aceitariam, se agora ele não passava de uma narrativa biomecânica, constituída de unidades de processamento e softwares? Cedo ou tarde teria de sair dali e enfrentar as reações. Abriu a porta do banheiro, caminhou pelo corredor. Os demais funcionários cumprimentavam-no como se nada tivesse acontecido. Seriam incapazes de perceber a mudança ou ele estaria delirando, elaborando uma ilusão de si mesmo? Digitou solicitação de dispensa, reuniu as coisas e foi em direção ao estacionamento, deslocando-se, vagarosamente, junto à parede, de cabeça baixa, resignado com a própria condição e segurando o corrimão, com muito cuidado, porque naquele dia o piso estava especialmente escorregadio.

FERNÃO GOMES

domingo, 6 de março de 2011

A MÁQUINA DO MUNDO

Na noite fria, eu acabava de deixar o labirinto subterrâneo do metrô, em meio aos ruídos dopplerianos dos trens velozes a percorrer as entranhas da terra. Quando alcancei o último degrau, estava sozinho numa plataforma extensa, e de entre as nuvens carregadas, vindo de uma dobra escura ou do fundo de meus próprios medos, manifestou-se diante de mim a figura de um demônio. Indefinido em seu monstruoso esplendor, suas formas se dissolviam nas trevas, mas ao mesmo tempo delas se destacavam; ao seu redor pairava uma estranha quietude - nem som ou silêncio, nem luz ou completa escuridão. Sem que eu pudesse contemplá-lo por inteiro (porque, por mais que o fizesse, seu vulto se volatilizava), ainda era possível pressupor o olhar enegrecido que atravessava meu ser, enregelando-me diante de sua figura inexplicavelmente anterior a tudo. De repente, a criatura rompeu o silêncio e assim me disse, embora ao meu redor indício algum revelasse a menor perturbação sonora: “Deixemos a retórica aos que desejam os deleites estéticos e vamos ao que justifica esse inusitado encontro. Tudo o que você procurou, dentro e fora de seu ser cansado das repetições estéreis e da inutilidade do saber ortodoxo; as explicações que você buscou na solidão de seu ínfimo conhecimento – um sentido para o absurdo de tudo existir, um nexo para a sistematização da ciência, da filosofia e de todos os saberes, todo o poder que até agora você jamais pôde alcançar – receba em suas mãos como a máxima dádiva a que aspiram muitos de seus pares. Para obter esse conteúdo, basta assinar o contrato com seu sangue, assim como tantos outros o fizeram. No último dia de sua vida, seu corpo e sua alma serão meus.” Ditas essas palavras, estendeu-me a mão nebulosa em cuja palma havia não uma pedra luminescente, como acontece nas ficções, mas uma possibilidade. Transido de medo, e estranhamente seguro de mim mesmo, contemplei o que me oferecia. Pouco depois, a entidade se dissolveu na noite. Olhei em todas as direções, buscando algum indício de sua presença, mas ao meu redor só havia névoa e escuridão.

para Carlos Drummond de Andrade

 
FERNÃO GOMES