sábado, 23 de abril de 2011

O HOMEM NO ESCURO

A onda friíssima de vento alcança seu corpo, perturba sua concentração, quase o empurra precipício abaixo. Ele sente o coração acelerar-se, dobra levemente os joelhos, procura a melhor posição para os pés, enquanto segura com firmeza a vara, em busca do equilíbrio que o manterá no cabo de aço, sabe-se lá por quanto tempo mais. Não esperava essa mudança repentina nas condições meteorológicas. Tudo fora criteriosamente calculado. No entanto, a massa de ar frio transtornara a situação: o vento entre os edifícios constrange seus movimentos, impõe outro ritmo à travessia. A meio caminho do percurso, ele parece tão convicto de seus propósitos, tão certo de suas intenções, quanto agora seu perigoso imobilismo também o revela reticente e suscetível. A tarde avança célere em direção à noite. Aqui embaixo, o trânsito está vencido; as viaturas se reproduzem, histéricas; megafones solicitam, advertem, ameaçam;  dezenas aglomeram-se pela calçada; amontoam-se nas portas dos estabelecimentos; na parada do ônibus; na entrada da estação do metrô. Com a vida interrompida, observam, inquietos, a façanha; perguntam, aflitos, sobre as razões que o impelem ao desafio, que o impulsionam ao limite das coisas. Repentinamente, uma senhora grita, em meio à multidão: “Olhem bem aquele rapaz! Ele tem a chave!” E aquele rapaz, habitante de sua infalível solidão, premido pelas ferozes oscilações da massa de ar frio, decidiu não resistir: retirou os pés do cabo de aço, como se os elevasse a degrau invisível, e percorreu a outra metade do percurso deslizando nas ondas do vento.

FERNÃO GOMES

quinta-feira, 14 de abril de 2011

D. JUAN

Aqui estou, no limite de tudo o que posso conceber de mim mesmo; no final de mim mesmo. Além dessas fronteiras, não estou certo do que encontrarei e tenho medo do deserto fantasmagórico que diante de mim se afigura, assombroso. Além de mim, não parece haver qualquer ontologia em que eu vislumbre ao menos uma sombra fugidia do que sou. No entanto, sinto-me estremecer, porque a força que me arroja, irresistivelmente, em tua direção talvez seja a mesma que também me apavora. E vislumbrar um novo caminho entre sedução e pavor, é, para mim, o triunfo do meu egoísmo, porque amar ou ser amado pode ser apenas uma ideia distante, uma imagem prestes a se dissolver ao menor movimento. Mas ironicamente é essa vaporosa fragilidade do amor que mais me atrai e me subjuga, como um algoz de cujo poder não tenho forças para escapar, mas cuja sedução estimo tanto quanto o mais negro dos meus desejos. Teu poder sobre mim é também o alento que me dá vida, a substância com que explico o horror e a dúvida de viver e, rindo secretamente, ainda posso transgredir as leis humanas do puro fingimento. Toda vez que estou diante de ti, sinto que estou diante do que mais amo: os estilhaços de mim mesmo, as cinzas do meu ser que continuamente se desfaz. Essa condição, entretanto, não me constrange, tampouco fere uma pressuposta integridade, posto que a cada fragmento que de mim se desprende, mais reconheço as inscrições de tua alma e a fúria infatigável de tua carne. Quando vou ao teu encontro, vou em direção à minha glória ou à minha morte? Presumo que em direção à minha glória, porque a morte só existe em palavras e meu presente é uma percepção sem limites. Eis então o meu legado: eu sou o caminho estreito em direção a tudo quanto mais temes, que é tudo quanto mais ardentemente desejas. Dentro de teu corpo e nos abismos insondáveis de tua alma, a cada instante eu ressuscito e te condeno.  

FERNÃO GOMES

sábado, 9 de abril de 2011

EPOPEIAS

Acumularam-se temores entre eles: ruínas de uma história de erros e inquietudes. Depois da grande rebelião, recolheram-se em seus invólucros espaciais e permaneceram distantes da Terra. As aparições tornaram-se raríssimas e mesmo nas estações mais frias, quando permitiam aproximações amistosas das tribos, deixaram de exibir seu álgido esplendor, cindidos por rancores e desilusões. Nunca mais aqueles campos foram os mesmos; arqueologia alguma será capaz de conceber os extensos labirintos sombrios cujos corredores presenciaram insólitos encontros. Resignadas em sua orfandade e impelidas por extremas aflições, as tribos pré-adâmicas irromperam nos templos e nas câmaras sacrificiais, em busca dos pomos da vida eterna, mas o Conselho Planetário há muito os apartara dessa dádiva ancestral. “É a grande noite cósmica!”, gritavam, ensandecidos, os líderes dos clãs, enquanto observavam estranhas luzes movendo-se nos céus da aurora do mundo. Muitos milênios depois, aos aedos restariam apenas fragmentos desses dramas inconcebíveis, substância e esplendor de suas epopeias. Mas em sua quietude interior, no silêncio em cujos abismos todo discurso se consome, eles conheceriam, secretamente, sua misérrima condição, e diriam consigo: “Nunca mais! Nunca mais!”

FERNÃO GOMES

domingo, 3 de abril de 2011

A VIDA POR UM FIO

A long-neck quase vazia balançava feito um pêndulo irregular, displicentemente pendurada pelo gargalo, entre os dedos médio e indicador. Tomou o último gole como se fosse o último. Uma frequência de amargor e acidez manifestou-se espontaneamente em sua boca e dali se espalhou por todo o corpo, alojou-se nos ossos, nos músculos, percorreu as extensas regiões submersas da pele, causando-lhe arrepios: foram sintomas produzidos não pelo excesso de cerveja, mas pela inexplicável sensação de premência da vida, de brevidade de suas potências. Quando é a própria vida que mais avidamente se deseja, é unicamente ela que se esvai e se perde, para sempre. Descalço, avançou pela areia grossa da praia, sentindo o cheiro forte de angústia e peixe a inundar-lhe o corpo: morrer talvez seja isso, o fim da embriaguez; o olhar construído em outro extremo. Aproximou-se do cesto de lixo e ali deixou a garrafa vazia entre as outras que ele mesmo há pouco deixara. O cheiro acre de vida em decomposição elevou-se pelo ar, causando-lhe náuseas e contrações no estômago. Despencou na cama assim como estava, humano e cheio de cicatrizes. Ao despertar, não se lembrou de sonhos ou de qualquer movimento ao longo da madrugada, mas havia em seu ser a quieta e límpida impressão de ter protagonizado périplos em extensos campos de trevas. Ainda não havia sol quando pôs os pés na areia, outra vez. Uma claridade vaga possibilitava um horizonte, mas nada por ali se movia exceto o mar ancestral: nenhum marinheiro, nenhum vapor. Sentou-se na areia e ficou quieto, contemplando um albatroz acomodado sobre o ninho. Mergulho em sua imensidão: uma vez sou a pena do albatroz; outra, seu próprio ninho, e ouço somente as ondas do misterioso mar, a engolir o cais, pouco a pouco. Mais adiante, uma gaivota riscava o horizonte, em voo esplêndido e mudo.

FERNÃO GOMES