A onda friíssima de vento alcança seu corpo, perturba sua concentração, quase o empurra precipício abaixo. Ele sente o coração acelerar-se, dobra levemente os joelhos, procura a melhor posição para os pés, enquanto segura com firmeza a vara, em busca do equilíbrio que o manterá no cabo de aço, sabe-se lá por quanto tempo mais. Não esperava essa mudança repentina nas condições meteorológicas. Tudo fora criteriosamente calculado. No entanto, a massa de ar frio transtornara a situação: o vento entre os edifícios constrange seus movimentos, impõe outro ritmo à travessia. A meio caminho do percurso, ele parece tão convicto de seus propósitos, tão certo de suas intenções, quanto agora seu perigoso imobilismo também o revela reticente e suscetível. A tarde avança célere em direção à noite. Aqui embaixo, o trânsito está vencido; as viaturas se reproduzem, histéricas; megafones solicitam, advertem, ameaçam; dezenas aglomeram-se pela calçada; amontoam-se nas portas dos estabelecimentos; na parada do ônibus; na entrada da estação do metrô. Com a vida interrompida, observam, inquietos, a façanha; perguntam, aflitos, sobre as razões que o impelem ao desafio, que o impulsionam ao limite das coisas. Repentinamente, uma senhora grita, em meio à multidão: “Olhem bem aquele rapaz! Ele tem a chave!” E aquele rapaz, habitante de sua infalível solidão, premido pelas ferozes oscilações da massa de ar frio, decidiu não resistir: retirou os pés do cabo de aço, como se os elevasse a degrau invisível, e percorreu a outra metade do percurso deslizando nas ondas do vento.
FERNÃO GOMES