domingo, 29 de maio de 2011

O CACTO

Encolhido a um canto, entre passeantes e espectros anônimos, aquele sujeito, discreto e solitário, testemunhou a cena brutal, como testemunhara tantas outras, desde sua infância distante, e inacabada. Sentindo-se premido por brutalidades e com olhar alheio, feito uma figura de Rodin, desprendeu-se do mundo e, movendo-se entre miasmas e pensamentos, constatou ser necessário resistir e adverti-los. Na quietude de sua alma, pronunciou o seguinte: “Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária: Laocoonte fora constrangido pelas serpentes, como Ugolino quedara esfaimado diante dos filhos. O cacto evocava também a aridez do nordeste: a caatinga infalível, a seca inevitável. Era enorme, mesmo para esta terra de ferocidades excepcionais. Um dia um tufão furioso abateu-o pela raiz. O cacto tombou, arrebentando os cabos elétricos, atravessado na rua, impedindo o trânsito de automóveis e de seres humanos, que por ali transitavam. Durante horas privou a cidade de iluminação, de energia e de vida. Era belo, inquieto, transgressor.”

FERNÃO GOMES

domingo, 22 de maio de 2011

NOVO FOLHETIM

A comunidade católica sentiu-se constrangida com a notícia, que reverberou por todo o orbe da santa madre igreja, causando embaraços de toda sorte: um padre brasileiro, estudante de fenomenologia, foi encontrado morto num quarto de hotel em Trastevere, em Roma. O caso ganhou as mídias do mundo – jornalistas, investigadores e autoridades do Vaticano seguiram pistas, refizeram históricos. Durante as investigações, depararam-se com personagens que estiveram com o padre brasileiro: três suspeitos, chaves para a solução do mistério - um Homem; um Padre; um Moço. Nenhum deles foi encontrado, nenhuma identidade revelada, vazios desconcertantes que levaram ao arquivamento do caso. Neste ponto, a literatura reivindica uma responsabilidade que a história é incapaz de assumir. Se o assassino fosse o Homem, o primeiro dos três suspeitos, a morte do padre ter-se-ia dado nas seguintes condições: depois de um telefonema, ambos se encontram no quarto do hotel: “Não estou aqui para discutir o valor de suas ideias. Os progressos que o Sr. tem feito junto aos sem-terra obstruíram as ações de políticos e de proprietários rurais brasileiros. Sua morte em terras estrangeiras não poderia estar mais ajustada às intenções daqueles que me enviaram.” Três tiros puseram fim aos dias do padre brasileiro. No entanto, se o assassino fosse outro Padre, o segundo entre os suspeitos, sua morte teria sido possivelmente assim: “O poder que me traz aqui está muito além daquilo que fez de nós o que somos”. “O que pode estar além do que somos?”, pergunta o Padre que morrerá. Após breve silêncio, seu executor responde: “Suas relações levaram seus passos a campos perigosíssimos.” “Como os consórcios para os quais você agora trabalha? Grupos que subvencionam pesquisas genéticas e concepção de híbridos? Não me parece ser a vontade de Deus.” “O que sabe sobre a vontade de Deus? Administrar Suas dádivas é uma tarefa suprema. E estar aqui, neste momento, faz parte desse poder.” Três tiros puseram fim aos dias do padre brasileiro. Não obstante, se o assassino fosse o Moço, o terceiro suspeito, a morte do Padre talvez fosse assim: “Suas declarações não são bem-vindas. Fomentaram atividades homofóbicas, neonazistas e ainda inspiraram ações renovadas da Klux Klan. Isso é intolerável e contraditório para quem defende comunidades rurais. Suas inconsequências terminam aqui.” Três tiros puseram fim aos dias do padre brasileiro.

FERNÃO GOMES

sexta-feira, 13 de maio de 2011

HAWORTH

Folhas de plátanos boiavam, encharcadas, nas primeiras poças que a chuva formara. Ciprestes e anjos confundiam-se entre os túmulos, na perspectiva translúcida das alamedas do campo-santo. No fim de tarde chuvoso, vultos silenciosos destacavam-se, sob guarda-chuvas, ao redor do esquife, que vagarosamente alcançara o fundo da cova. Entre os fieis que ali estavam, alguém cogitava esses pensamentos: “Quantas vezes desafiamos os fantasmas, só nós dois, ficando em pé, entre as sepulturas, invocando-os, desejando que aparecessem naquelas noites frias.” O padre concluíra já seu discurso, desenhara no ar e no próprio peito uma cruz invisível, abençoando parentes e amigos que ali protagonizavam um epílogo. “Nunca mais hei de voltar àqueles campos, meu querido, a não ser que seja ao seu lado, outra vez, como dois fantasmas vagando entre as sepulturas, sentindo o vento frio soprar em nossas faces, para sempre.” Afastou-se do grupo, feito sombra fugidia, derramando lágrimas na chuva, enquanto se dissolvia na perspectiva da alameda, como as folhas dos plátanos. Lançaram flores sobre o caixão, esparziram pétalas em saudação ao morto, possivelmente a última fala daqueles que ficam, e deixaram, silenciosos, o campo-santo. Por aquela porta, que agora se fecha, nada mais passará.

FERNÃO GOMES

sábado, 7 de maio de 2011

CAVALO DE TROIA

“Depois de desfiados todos os novelos, só o que me resta é esse instante, a perturbadora brevidade desse instante e com ele as cinzas do que foi a minha palavra.” Uma aeromoça passou e, sorridente, ofereceu serviços. Ele agradeceu, abraçou a valise, encolheu-se no acento. “A palavra em chamas.” Levantou a cabeça, percorreu com um lance de olhar o interior da aeronave. Quase todos adormeciam, quase tudo estava entregue às trevas. Alguns passageiros liam, outros conversavam mentalmente. Procurou uma posição que acomodasse o corpo e recostou a cabeça. “Como reconstituir a totalidade de uma existência? Como fazê-lo, se tudo de que disponho agora é este breve momento de suspensão? Quando penso em mim mesmo em qualquer passado, vejo outra pessoa, rememoro uma ficção vivida por outro. O que foi pertence a outro, a outros eus que não reconheço mais. Só este momento me pertence. Vou preservá-lo como preservo este segredo. Eu sou o Odisseu.” Segurou a valise junto ao corpo, como quem acomoda o filho ao colo, e ficou a tamborilar os dedos, pacienciosamente. A voz do comandante despertou os demais passageiros, avisando sobre uma turbulência próxima.

FERNÃO GOMES

segunda-feira, 2 de maio de 2011

AMÉRICA (fragmento de uma releitura)

Ela volta do quarto num vestido quase curto, discretamente florido, terminando de calçar uma sandália fina, ajeitando-a no pé com o dedo indicador. Tira da geladeira umas latinhas de cerveja e as esconde num saco plástico de supermercado. Pega o baseado e diz ao ex-patrão: “Vem. Quero aproveitar esse fim de tarde.” Saem pelo corredor e sobem silenciosamente as escadas do edifício. No último andar entram por uma porta, onde se penduram avisos e advertências sobre os perigos do sistema elétrico. Pela escada estreita alcançam o terraço ocupado por máquinas, plantas e folhagens penduradas por todos os cantos: uma floresta minúscula possivelmente conservada pelo zelador do local. Avançam por entre as folhas, como se atravessassem denso bosque, em direção a um ponto escuro e oculto. Sentam-se num canto, de onde podem ver, sem ser vistos, qualquer pessoa que por ali apareça, além da paisagem suburbana e suja que se descortina em fragmentos atrás das folhagens. A índia abre as latinhas de cerveja, eles brindam e bebem. Sempre em silêncio, ela acende o baseado, fuma duas, três vezes, passa o cigarro ao sujeito, que a imita. Ele sente amortecer todo o corpo, devolve o cigarro, aproxima-se dela e beija-lhe a boca. Ela corresponde, porque era isso que queria. Pouco depois se entregam um ao outro, morrendo de tesão, enquanto as latinhas de cerveja esperam, a um canto, trocando confidências na língua que só elas entendem: “Olhe só pra esses dois”, diz uma delas. “O que é que tem?”, responde a outra. “Mais parecem uma criatura bizarra de muitos braços e pernas, rolando e se esfregando de um lado a outro.” “E o que você tem com isso?” “Eu, propriamente, nada, mas há pouco estavam ambos entre socos e hostilidades. Não se passaram minutos já estão aos beijos, abraços e carícias.” “Isso é o sexo, amiga. É assim que se explicam muitos enredos desse mundo. Humanos são contraditórios: repudiam e desejam a um só tempo as mesmas coisas.” “Como sabe tanto sobre humanos, sendo apenas uma lata de cerveja?” “Porque sou reciclável como eles. Esvaziam-me, reciclam-me, enchem-me de cerveja, dão-me um novo lacre, que é a alma estrutural das latas de cerveja, e aqui estou. Tive muitas vidas, passando de mão em mão, de boca em boca, ouvindo as narrativas dos humanos, ao longo dos anos e das estações. Se você conhece pouco sobre eles, suponho que seja uma lata nova, tem ainda muitas vidas pela frente.” “Parece que sim. O alumínio de que sou feita ainda brilha e está intacto.” “Mas terá cicatrizes como eu. Os humanos não se contentam em marcar a si próprios, deixam sinais em tudo o que tocam. É o que agora fazem esses dois, um ao outro.” “Não imaginava que ser uma simples lata de cerveja fosse tão complexo.” “Complexidade é uma questão de ponto de vista. Se quiser aprender sobre essas criaturas, fique em silêncio e observe o que fazem. Em muitos casos, como é o nosso, observar é o mesmo que experimentar.” “Como tem tanta certeza?” “Ninguém tem certeza alguma nesse mundo. E agora fique em silêncio, observe e aprenda. Essas talvez sejam as últimas palavras que dirigimos uma à outra. Adeus.” “Adeus.” E permaneceram caladas, aguardando os amantes, que logo viriam esvaziá-las.

FERNÃO GOMES