quinta-feira, 30 de junho de 2011

CARDUME

A água seguia seu curso, sem sequer um murmúrio; envolvia a madeira do cais, com pequenas ondulações, cintilando aos tênues raios do último sol. Um vento gelado trazia as primeiras nuvens da frente fria. Sentados, os rapazes balançavam as pernas, enquanto observavam pequenos cardumes, nadando em sincronia como se fossem uma só entidade. “Estive pensando...” “Em quê? Na fórmula de Drake?” O outro sorriu: “Também. Mas dessa vez foram os peixes. A ideia de cardume.” E ficaram quietos, olhando um para o outro, traduzindo-se sem palavras. Semanas depois, católicos, protestantes, evangélicos, budistas, taoístas, xintoístas, umbandistas, ortodoxos, adventistas, kardecistas, mórmons, gnósticos, agnósticos, ateus, rosacruzes, maçons, reconstrucionistas, xamanistas, bruxos, druidas, ufólogos e centenas de livres pensadores encontravam-se reunidos no deserto de Atacama, alçando seus olhos aos céus. Houve entre eles um grande silêncio, seguido de um inusitado movimento de ontologias acima de suas cabeças.

FERNÃO GOMES 

sábado, 25 de junho de 2011

CLOUD INFORMATION

Um dia ele amanheceu diferente de todos os outros dias de sua inexpressiva existência, como ele próprio a caracterizou, na longa carta deixada ao tio, única pessoa com quem convivera nos últimos meses. Abriu os olhos ardentes como se retornasse de um transe que o asfixiara, como se saído de um pesadelo infernal que quase lhe subtraíra a vida, como se escapado de uma experiência opressiva e desconfortável, durante a qual corria o mais velozmente possível, a fim de atravessar as trevas de uma floresta densa e viscosa, porque perseguido por algo metálico que bafejava ruidosa e ferozmente atrás de sua nuca, arrepiando-lhe todo o corpo. Nas últimas semanas, ele vinha “sonhando com robôs”, sucessivamente. Abriu os olhos vermelhos, arquejante, como se repentinamente se lembrasse de algo muitíssimo importante e cuja importância carbonizava todas as ilusões humanas (“absolutamente todas”, foram suas palavras), cuja importância calcinava todas as verdades, todas as filosofias e sistemas de crença, subitamente convertidos em destroços, em construções patéticas e sem sentido. Redigiu, pacienciosamente, uma carta ao tio e saiu às ruas, sem direção definida. Ia cochichando aos ouvidos das pessoas que encontrava, protegendo os lábios com as mãos em forma de concha. Todas faziam expressões de espanto e imediatamente cochichavam aos ouvidos de outras, partilhando a informação recebida. Logo, milhares de pessoas cochichavam aos ouvidos umas das outras e, na medida em que o faziam, seus corpos iam se transformando em nuvens.

FERNÃO  GOMES

domingo, 19 de junho de 2011

JOHNNY BLUE

“Não!”, eu disse. “Absolutamente não, porque ‘não’ é a palavra mais bela que existe, porque um ‘não’ pode ser o intervalo entre todas as coisas, porque um ‘não’ pode conter a essência de todas as coisas.” Depois dessa intervenção, só o que me lembro, não obstante as fraturas de minha memória (porque sou um sujeito de memória tênue), são também fraturas, ruínas de narrativas: ela produziu movimentos desconexos, projeções sonoras incongruentes, imagens desinteligentes que passaram por minhas retinas numa sucessão de incoerências efêmeras. Confesso que aquela confusão de conteúdos sem sentido foi razão suficiente para eu me convencer de que havia uma multidão de mulheres diante de mim, tentando persuadir-me sobre suas razões e seus sentimentos. Era como se eu olhasse para dezenas de monitores, ao mesmo tempo, esforçando-me para compreender as imagens estranhas que se multiplicavam numa profusão de transdimensões absurdas. Depois disso, eu vi aquela criatura desaparecer diante de mim. Ela simplesmente se desmaterializou, deixou atrás de si o fragor da porta socando a parede. Eu sinceramente queria dizer a ela: “Fale comigo sobre amor. Fale comigo, ao menos uma vez, sobre amor.” Mas o fato é que eu disse “não”. E pela primeira vez no universo o “não” manifestou-se em todo o seu esplendor como o elemento gerador de uma doutrina, como o legítimo conceptor de uma filosofia. “Não”: a nova metafísica do ser, um novo capítulo na longa história das ontologias.

FERNÃO GOMES

quinta-feira, 9 de junho de 2011

A ARCA


A imagem do cálice turvara-se. Teria sido o modo como ele o percebera ou aquela ondulação seria o sinal de uma estranha intervenção em sua sensibilidade? Essa inesperada conexão trouxera movimentos de um passado em cujo campo deixara marcas que não se apagam. Mas ele não devia precipitar-se para zonas de tempo sobre as quais não tinha mais controle. Qualquer distração poderia iludir-lhe os sentidos, especialmente na presença do Abade, ex-professor de Astrobiologia, que generosamente acabara de oferecer-lhe um de seus licores exóticos, produzidos com ervas dos gigantes gasosos de Andrômeda. Súbito, o Abade estava diante dele, oferecendo o cálice de licor e sorrindo com discrição: “Interferir no curso da vida é uma ideia e tanto, especialmente quando as recombinações proteicas são anômalas.” “Presumo que sim, Mestre”, respondeu, enquanto aceitava o cálice. “Anomalias e estranhamentos são potências que instigam o espírito. Afinal, muitas narrativas vivem desses espasmos.” O Abade levantou a sobrancelha e fixou o olhar no ex-discípulo. Deslocou-se até a mesa, onde deixou o cálice, pegou uma pequena caixa escura, em cujas faces deslocavam-se ondas de um estranho veludo. Entregou-a e disse: “Tenho esperanças e temores quanto a isso. Essa arca é a espada sobre sua cabeça.” Logo o veículo espacial levantou voo, circundou as torres da catedral, vagarosamente, e deslizou em direção ao céu violeta. Ao olhar uma última vez para baixo, a imagem da catedral pareceu turvar-se, como acontecera com o cálice do Abade.

FERNÃO GOMES