domingo, 31 de julho de 2011

X-FILES

Ele pôs o fone de ouvido, mas não conseguiu ouvir New York, New York. Talvez o aparelho estivesse com defeito. Chamou o operador de áudio e, num inglês sofrível, explicou o problema. O rapaz fez ajustes em alguns botões e o devolveu em perfeito estado de funcionamento. Enquanto ouvia a canção, cobriu a cabeça com o capuz, como tinham feito os demais monges que ali aguardavam o momento da gravação do comercial. Estavam sentados na posição de lótus, ouvindo nos fones a voz de Frank Sinatra. Percorreu com o olhar as câmeras e os holofotes dispostos em todos os cantos do grande terraço, de onde era possível contemplar a Ilha de Manhattan, naquele fim de tarde frio e sem nuvens. A numerosa equipe da emissora movimentava-se, de um lado a outro, dispondo os últimos microfones, realizando testes. Logo, o diretor fez um sinal, interromperam a música, ficaram todos em silêncio. Depois da contagem regressiva, entraram ao vivo na programação da emissora. Ao sinal do assistente, os monges iniciaram a vocalização do OM, em tom grave e vigoroso. Aos poucos, sua vibração começou a estremecer as instalações de transmissão, explodiram alguns holofotes, romperam-se fios elétricos e, um a um, os monges elevaram-se no ar e, diante dos olhos de milhares de pessoas, desapareceram na última luz do dia.

FERNÃO GOMES

terça-feira, 26 de julho de 2011

UMA NOVA NOVA TEORIA DO ROMANCE

Eles caminhavam em círculo, percorrendo aqueles vastos campos inóspitos, forjando na terra um caminho. A cada volta deparavam-se com as marcas que tinham deixado, admirando o lavor dos próprios pés. Eles caminhavam em círculo, percorrendo aqueles vastos campos inóspitos, forjando na terra um caminho. A cada volta deparavam-se com as marcas que tinham deixado, admirando o lavor dos próprios pés.  Eles caminhavam em círculo, percorrendo aqueles vastos campos inóspitos, forjando na terra um caminho. A cada volta deparavam-se com as marcas que tinham deixado, admirando o lavor dos próprios pés.  Eles caminhavam em círculo, percorrendo aqueles vastos campos inóspitos, forjando na terra um caminho. A cada volta deparavam-se com as marcas que tinham deixado, admirando o lavor dos próprios pés.

FERNÃO GOMES

domingo, 17 de julho de 2011

DOPPELGÄNGER

Tem os meus olhos - e um olhar de amplidões que eu jamais supusera. Vi-o uma única vez, quando saía de um zoológico, num fim de tarde frio, que deixara em meu ser impressões de irrealidade, especialmente depois que passei pela jaula da fênix e do basilisco. Havia poucas criaturas transitando pelas alamedas álgidas, quando ouvi aquela composição de violinos emergindo das trevas, em todo o seu esplendor, para fundir-se com um coro de barítonos sombrios que eu sentia incorporarem-se à paisagem desolada do pôr-do-sol, como um réquiem. Ele ficou parado, olhando fixamente, as mãos apoiadas no vidro de uma janela invisível, desejando algo íntimo e indevassável que eu carregava comigo, minha própria alma. Foi uma experiência tenebrosa: esqueci-me dos animais que acabara de rever e fugi, constrangido por uma estranha vibração que trespassava todo o meu corpo. E agora posso vê-lo, outra vez, olhando fixamente através da mesma janela. Não posso abri-la, deixarei tudo trancafiado! Ele é um eu esquecido, uma sombra ancestral, a não-linearidade em minha palavra. 

FERNÃO GOMES 

sexta-feira, 8 de julho de 2011

TAXI BOY

“Haverá um tempo para todas as coisas? Você acredita nisso? Que haverá um tempo em cujas entranhas repousa, silenciosa, a compreensão de todas as coisas? Ainda que houvesse, quantas delas, essenciais para uma vida, são assimiladas tarde demais, tão tarde que chega a ser um ultraje, tão tarde que nenhuma lágrima explica.” Levantou-se, passeou nu pelo quarto, completou o cálice, acendeu um cigarro. “Sua ingenuidade me dá calafrios, porque não é dissimulada; é expressão espontânea de preconceito mais do que seria artifício do orgulho. E isso é tudo o que você tem: o seu preconceito, razão da percepção tardia das coisas, como já disse. Enxugue suas lágrimas, elas são inúteis e não explicam nada. Quantas níobes há em você? Que desperdício! Vista-se e saia. Jamais diga ao seu namorado o que não aconteceu entre nós. Ele nunca entenderá.” Virou o último gole de vinho e ficou quieto, fumando, esperando que ela se recompusesse. “Eu poderia amar você uma vida inteira.” Ela saiu chorando, enquanto ele voltou para a cama. Ao passar pelo espelho, sua imagem não se refletiu na lâmina.

FERNÃO GOMES