sexta-feira, 26 de agosto de 2011

VISITA DE ESCOBAR


Era o dia das boas sensações. Escobar foi visitar-me e saber da saúde de minha mãe. Nunca me visitara até ali, nem as nossas relações estavam já tão estreitas, como vieram a ser depois; mas sabendo a razão da minha saída, três dias antes, aproveitou o domingo para ir ter comigo e perguntar se continuava o perigo ou não. Quando lhe disse que não, respirou. “Tive receio”, disse ele. “Os outros souberam?” “Parece que sim: alguns souberam.” Tio Cosme e José Dias gostaram do moço; o agregado disse-lhe que vira uma vez o pai no Rio de Janeiro. Escobar era muito polido; e, conquanto falasse mais do que veio a falar depois, ainda assim não era tanto como os rapazes da nossa idade; naquele dia achei-o um pouco mais expansivo que de costume. Tio Cosme quis que jantasse conosco. Escobar refletiu um instante e acabou dizendo que o correspondente do pai esperava por ele. Eu, lembrando-me das palavras do Gurgel, repeti-as: “Manda-se lá um preto dizer que o senhor janta aqui, e irá depois. “Tanto incômodo!” “Incômodo nenhum”, interveio Tio Cosme. Escobar aceitou, e jantou. Notei que os movimentos rápidos que tinha e dominava na aula também os dominava agora, na sala como na mesa. A hora que passou comigo foi de franca amizade. Mostrei-lhe os poucos livros que possuía. Gostou muito do retrato de meu pai; depois de alguns instantes de contemplação, virou-se e disse-me: “Vê-se que era um coração puro!” E sem que eu esperasse, ainda que tacitamente desejasse, Escobar deu dois passos em minha direção, aproximou o rosto do meu, abrochou os lábios e... Não me atrevo a dizer nada; ainda que queira traduzir aquele instante, quarenta anos depois, não me julgo capaz de fazê-lo. Sei apenas que doce foi a sensação do beijo; ele afastou-se com delicadeza e esteve a contemplar-me, quieto, vasculhando com seu olhar penetrante a inquietude que se instalara em mim. Eu fiquei encolhido a um canto, cerzido à parede, dominado completamente por uma espécie de vertigem, sem palavras. Preso, atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ele com mil palavras cálidas e mimosas... Sentia minhas entranhas devassadas pelos olhos claros e dulcíssimos do meu estimado amigo.

para Alexandre Vieira, Guilherme Sandi, Santiago Garcia

FERNÃO GOMES

sábado, 20 de agosto de 2011

CHIAROSCURO

Os espaços da estação foram tomados por uma névoa repentina. Ninguém esperava aquilo, pelo menos não daquele modo tão súbito, tão silenciosamente invasor. Monitores e relógios desapareceram quase que por completo; deles restariam vagas luminescências perdidas ao longo da grande gare, convertida num estranho campo de esquecimento. O ar gelado penetrava os vazios entre as colunas de mármore descomunais. Naquele instante, naquele perfeito e simétrico instante, ela se encostou num canto de parede, contraindo os músculos das costas ao contato imediato da superfície fria. “É preciso estar atenta em meio ao nevoeiro.” Ela se assustou com a senhora encostada à parede, ao seu lado. Ficou olhando, sem reação, tremendo de frio. “Tome; use isto.” Pôs com delicadeza um casaco sobre seus ombros, sorriu sem mostrar os dentes e se afastou, desfazendo-se na névoa. “Não perca seu trem. A hora se aproxima.” Um súbito cheiro de fritura e café construiu imagens em sua mente e despertou o ideal de família há muito adormecido. Onde estarão? Quem eram eles? Instintivamente ela olhou para cima, a fim de identificar, no jogo de luzes e sombras, as gotas de chuva, que parecia ter recomeçado. Só então entendeu que estava chorando. Enxugou os olhos na manga do casaco, fez uma prece com quaisquer palavras, para encontrar nelas o fogo ao redor do qual encolheria seu ser e desprendeu-se da parede, em direção à plataforma de embarque.   

FERNÃO GOMES

domingo, 14 de agosto de 2011

AUTOFICÇÃO

É um mundo inóspito; intenso; vigoroso. Durante todos esses anos, tenho me sentido cercado, encarcerado em mim mesmo, sozinho como um objeto esquecido no fundo de uma gaveta. Todos foram embora; não há mais ninguém por esses corredores extensos; apenas a vertigem de sua perspectiva interminável. Estou sozinho nesse pátio à meia-luz. Desculpem minha sinceridade e o tom confessional de minhas palavras, mas sinto-me melhor do que quando estava cercado por eles. Sou escritor e professor e, às vezes, me surpreendo buscando uma razão, um nexo que explique todas essas monstruosidades. Eles falavam, aflitivamente, todos ao mesmo tempo, e em voz alta, vociferavam em busca de coisas, em busca de ilusões, em busca de nada. São fantasmas perseguindo fantasmas; sombras em busca de sombras. Naturalmente, eu não tinha respostas para as perguntas que faziam. Quem as tem? Eles não sabiam que eu tinha as mãos vazias. Creio que todos os homens têm as mãos vazias. Encolho-me, por um instante, diante da onda de ar frio que avança por esses corredores, enregelando minha pele. Nesse momento, restam os últimos funcionários, apagando as luzes das últimas salas. Antes de eu me levantar desse banco, antecipo em mim mesmo o ruído dos meus passos pelo corredor e o fragor da porta se fechando. Não sei em que mundo entrarei, quando puser os pés na noite que entra.

FERNÃO GOMES

sábado, 6 de agosto de 2011

A HORA FRIA

Escolhi esconder, mas tudo em mim são os seus dez bilhões de olhos; tudo em mim são distâncias inconcebíveis – berçários de estrelas; regimes que silenciam oposições; seu implacável furor. Escolhi esconder, mas como assimilar esse jogo, se [agora sei] sou eu que me persigo, e o aparente ludismo pode se converter repentinamente em horror difuso e fronteiriço? Sinto cansaço de tudo, mas porque sou cambiante digo “sim” a todas as coisas, digo “não” ao não: necessito de tudo que é perfeitamente humano, de tudo que em mim são distâncias incomensuráveis, mas absolutamente transponíveis – misteriosas planícies siderais; constrangimentos entre cristãos e muçulmanos; o cheiro ácido e atraente do seu sexo; o frio penetrante da última hora antes do amanhecer. Também escolhi abandonar os caminhos que me conduziam à sua presença, mas a cada passo em direção à circunferência recolho despojos de sua acidez, do desenho tortuoso e úmido de suas pegadas, mas mesmo assim prossigo como quem caminha pelo cais do porto, num dia chuvoso, perseguindo os vagos sinais de uma presença espectral, uma presença que me impele continuamente para dentro de mim mesmo. Por enquanto, não espero nada, porque tenho o código de uma nova mídia. Ele está inscrito em minha alma - é a razão de  todas as minhas inquietudes e de suas futuras mensagens de texto.

FERNÃO GOMES