sábado, 24 de setembro de 2011

O FANTASMA NA MÁQUINA



Naquele instante, ela chorava convulsivamente, como se fora trespassada por uma paixão sem cura; fazia esforços para conter os soluços que se multiplicavam numa polifonia caótica; tentava enxugar o rosto imerso em lágrimas, por entre as quais desciam manchas do lápis que contornara os olhos. Naquele simétrico instante, quando pôde falar, vieram à tona as razões do assombro: acabara de receber um email do pai, falecido há anos. A incredulidade previsível motivou investigações, mas tudo permaneceu sem explicação, sem uma razão que justificasse a estranha mensagem. O pai anunciava visita próxima e solicitava recepção em conformidade com os rituais da tradição em que fora educado. Ela estudou as tradições, afastou-se dos amigos e, contra todas as vozes que àquela encenação se opuseram, apartou-se do mundo e preparou-se para o encontro. Encomendou uma nova mesa, dispôs nela iguarias e objetos tradicionais. Banhou-se, demoradamente, vestiu-se e, silenciosa, como convém às representações hieráticas, esperou, à mesa, a chegada do visitante. Naquele simétrico instante, em que tudo o que se move parece transpor as medidas do perceptível; em que um tremor no coração anuncia, como um arauto, o inevitável assombro; em que todas as ciências e todos os saberes silenciam seu rugido e humildemente obliteram-se diante do inominável; em que todas as paixões, que se escondem sob a ilusão de seus sabres afiados, perdem seu vigor e sua fúria; naquele instante, em que tudo o que se perde, para sempre estará perdido; naquele simétrico instante, o pai dela apareceu.

FERNÃO  GOMES

sábado, 17 de setembro de 2011

PERFORMANCE


Como se houvesse um acordo secreto entre sua sensibilidade inquieta e a transtecnologia celestial (a mesma que vaga pelos campos obscuros do esquecimento, tanto quanto se esplende dos belíssimos monitores da Apple), como se houvesse uma combinação tácita, seu olhar percorria, criteriosamente, as palavras daquela narrativa. Enquanto seus olhos deslizavam pelo texto, tentava esconder de si mesma a ansiedade que a corroía, forjando uma isenção impossível, ocultando-se sob um falso equilíbrio helênico, como fizera ao longo da vida. No entanto, seus dedos frágeis, que seguiam as linhas do texto em busca de algum sinal, de uma pista qualquer, seus dedos trêmulos eram reveladores de sua completa insegurança, de sua inquietude diante daquelas palavras que causavam tremores em seu coração, diante daquelas palavras que provocavam calafrios e faziam com que ela se sentisse tão estranhamente solitária quanto as figuras dos quadros de Edward Hopper. No entanto, recomeçou a leitura: “Eu seria capaz de apagar as cicatrizes que você deixou em mim, se isso impedisse sua partida.” Não pôde mais: fechou o livro e o afastou de si, empurrando-o sobre a mesa, tentando escondê-lo entre o vaso de flores e a bolsa aberta que há pouco ali deixara. Sentiu falta de ar, foi à sacada e ficou quieta, olhando em direção ao não, quase subjugada por uma intensa vontade de chorar. Mas resistiu e não cedeu às lágrimas. Tivesse um vislumbre do que poderia ter sido a vida, antes de entrar por uma de suas muitas portas, teria entrado?     

FERNÃO GOMES

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

PERFORMANCE


Foi brusco o movimento que o trouxe à vida. Percebeu-se sentado na cama, respiração alterada, coração acelerado, o corpo e o lençol ensopados pelo suor viscoso. Ficou assim por um instante, banhado pela luz mortiça da luminária, incomodado com a boca seca, esturricada, sob cuja aridez se escondem os fósseis do que ficou por dizer. Trouxe consigo a sensação de um deslocamento inesperado, de uma intervenção digressiva que o removia de uma narrativa inconclusa e o transfixava numa possibilidade cenográfica aparentemente desconhecida. Levantou-se, percorreu o quarto com o olhar: nenhum objeto evocava qualquer lembrança, não parecia ter o menor vínculo com aquele cenário no qual acabara de aparecer, vindo não se sabe de onde. A sensação de que representara um papel numa trama subitamente suspensa e inacabada ainda era forte, ainda vibrava em todo o seu ser. Descobriu a cozinha e procurou água. “Tenho a impressão de haver palcos em mundos diferentes; e alguma simetria perfeitamente inconcebível mobiliza-nos entre dezenas (talvez centenas) de representações com as quais é possível construir um drama cósmico. Sob essa perspectiva, os sonhos são lembranças de atuações anteriores. Mas isso é loucura; devo estar perdendo o juízo.” Fez um breve reconhecimento dos cômodos do apartamento e chegou à sacada. Sentiu o vento frio sobre o corpo ainda quente. “Se for isso mesmo, quantos sujeitos eu sou? Ou de quantos eus sou constituído?” Contemplou as luzes da cidade, enquanto fechava sobre o peito o casaco com o qual despertara, ainda umedecido de suor.

FERNÃO GOMES

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

EPITÁFIO


Hoje, que me sinto cansado de sentir o que sou,

Hoje, que pensar que me sinto cansado de sentir o que sou me cansa,

Hoje, e só hoje, e nunca mais,

Quero escrever o meu epitáfio:

Aqui jaz Fernão Gomes

Tudo o mais é mitologia.



Sou sublime, meus irmãos, assim como sois também, e não sabeis.

Não pretendo jazer sob a terra, silencioso, como jazem outros homens,

Porque jazer sob a terra, como jazem outros homens, silenciosos,

Não é destino; é símbolo; é sombra; é nada.

E, por esta razão, por esta única e essencial razão,

Quero agora corrigir o epitáfio que acabo de conceber:

Aqui não jaz Fernão Gomes

Ele deu um chiste na morte

E pegou o primeiro caminho de estrelas pro infinito.

 
FERNÃO GOMES