sábado, 31 de março de 2012

INCAL


Naquela tarde, em que todas as substâncias constituiriam, se desejássemos, um campo afortunado de contexturas transreais capazes de forjar perturbações no espaço entre os dedos de Deus e de Adão ou entre os lábios do beijo de Rodin; naquela tarde, em que ele caminhava por uma alameda, produzindo nano-oscilações no tecido que mal encobre os acessos àqueles mundos; naquela tarde, em que ele sentia o vento soprar vestígios de irrealidade; naquela tarde, essencialmente naquela tarde, materializou-se diante dele um sujeito grandalhão, um colosso, um magneto em cujo corpo havia sinais de uma estranha liga elétrica e partículas de uma geleia mefítica dimensional, espalhadas pelo casaco escuro. “Com todos os demônios!”, explodiu o monstrengo. “Encontrei você, afinal!” O rapaz paralisou diante do titã, sentiu o coração espancar o peito muitas vezes e nada pôde fazer, exceto: “Que é isso?” “Achou que poderia se esconder nessa realidade patética, malcheirosa e repulsiva? Devolva-me o cristal ou vai conhecer minha fúria!” O peregrino das alamedas arregalou os olhos, os traços de seu rosto se distenderam, os lábios se despregaram, embasbacados, enquanto assistia à incrível transmutação do mutante que se projetava acima de sua cabeça. De repente, uma luz intensa se expandiu entre os dois, cegando a criatura, momentaneamente. Segundos depois, quando pôde enxergar, o peregrino não estava lá.
 a Moebius, a Jodorowsky

FERNÃO GOMES