quinta-feira, 26 de abril de 2012

EPÍLOGO



Quantos séculos em silêncio! É como se eu olhasse para um céu repentinamente nublado e visse não apenas sua óbvia superfície obscurecida pelas nuvens, mas a irrealidade sugerida por essa aparição, o sentido oculto que só se deixa entrever por quem já se libertou de algumas ilusões. Um adepto, propriamente dito. Confesso, no entanto, que, embora eu vislumbre sutilezas do espírito, ainda estou preso em algumas armadilhas, dentro de mim mesmo, e não consigo me desvencilhar delas, porque estou atado à memória emocional que insiste em trazer ao meu presente um passado que não quer ser esquecido. Um passado que ainda me subjuga por suas transversalidades éticas, mas principalmente por sua tecnologia estética, que eu considero essencial. Engajamento? Isso não passa de uma ilusão, de uma promessa de futuro galardão e arrebatamentos seráficos. Seu engajamento me irritava, S.S., especialmente por ser ingênuo, não obstante eu considerasse sua legitimidade e pureza de intenções. Nunca manifestei minha irritação, porque isso também perturbaria minha contemplação estética. E agora, o que me resta, além de deixar este depoimento, são as minhas lembranças das tardes frias, do vento soprando em nossas costas, enquanto contemplávamos os ciprestes curvando-se todos numa mesma direção, como vultos lamuriantes de um tempo perdido. Nossos momentos também se perderam. Tudo agora está envolto na névoa de um estranho passado. É irônico como tantas coisas se perdem por tão pouco. Não sei se você compreende, S. S., mas quando isso acontece, ficam só os vestígios de uma sensação irritante de desperdício, uma vontade de gritar feito um animal trespassado, ao sentir a lâmina fria romper-lhe as fibras dos músculos. Tenho vontade de dar um soco em alguém, em alguma coisa, pra descarregar essa indignação. Não é justo que certas coisas não se concretizem. Minha vontade é de chutar uma pedra, pra sentir meus dedos doerem e eu ficar com mais raiva ainda. Mas agora não tenho mais tempo. Eles estão chegando, sinto que estão próximos. Não posso vê-los de onde estou, mas sinto sua presença psíquica nesse ar quase pestilento. Por essa e por aquelas outras razões que você sabe quais, encerro minhas palavras. Este depoimento termina aqui. 

FERNÃO GOMES