terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

NO INTERIOR DO CUBO BRANCO



Tinha, de fato, uma grossa camada de poeira sobre os móveis dispostos no grande salão. O que restava dos lençóis e de sua pressuposta alvura cheirava a mofo transmorfo. Eram formas ainda trancafiadas no esplendor de um passado, de um tempo que se consumira nos miasmas da vogue. De repente, dezenas de autômatos se materializaram, impuseram-se na paisagem desolada, meio ameaçadores, tinha entre eles uma névoa quase espessa. Um então tomou forma e veio em minha direção - cabelos brancos longamente espetados, óculos de sol, mãos acomodadas nos bolsos de um casaco escuro. “Entendeu como o todo se move, além de apenas admirá-lo?” – perguntou. “Por que estamos entre esses híbridos ameaçadores?” – perguntei. “Ora, isso é uma artimanha da sua própria ficção.” Aproximou-se e, após um breve silêncio, disse, sorrindo: “A semidemência da repetição e a exaustão do automatismo não são retrocesso, são mais do mesmo, são atributos desse mundo. Venha, vamos percorrer os caminhos da luz, sem luz; e os caminhos do amor, sem amor.” Pouco depois, deixamos para sempre o grande salão entregue a si mesmo.

FERNÃO  GOMES