sábado, 20 de julho de 2013

A SOMA DOS DIAS


Lembro-me vagamente de palavras lançadas ao vento frio, naqueles corredores extensos. Eu não podia ver o fim daquelas paredes altíssimas, tão longínquas e escuras, tão indevassáveis nas alturas e nas sombras de uma ilusão em forma de perspectiva. Ela dizia, sorrindo: “Venha passear comigo pelos campos sulfurosos da Terra.” Eu me esforçava para alcançá-la, impunha-me forças descomunais, ação aflitiva de músculos espartanos, mas ela se dissolvia e escapava por entre os meus dedos, como um vapor fugidio, como uma paixão que se desfaz ao menor movimento. 

FERNÃO GOMES

quarta-feira, 10 de julho de 2013

PROVENÇAL


Senhora, foi preciso que eu sangrasse vagarosamente, feito um arcanjo quântico, em busca de crepúsculos escarlates; foi preciso que eu atravessasse os lagos de sangue e sentisse o fel em meus dentes, como quem digere o metal amargo e translúcido; foi preciso que eu ficasse apenas com a memória do vento frio, além da álgida e pungente sensação de ter nada em minhas mãos; foi preciso que seu falso punhal me trespassasse para que eu compreendesse que seus esconderijos são invenções de temor e vazio. Suas máscaras são ilusões que se corrompem tenuemente como os delicados círios, diante do fogo implacável. Eu sou esse fogo, a chama diante da qual tudo se revela. Suas criações, tênue Senhora, serão nada mais que vultos desaparecendo, tristemente, como hologramas efêmeros, nas avenidas assombrosas de um solitário disco rígido.

FERNÃO GOMES

segunda-feira, 1 de julho de 2013

FRAGMENTO


Eu tentei, mas não foi possível conter a lágrima. Agora compreendo que nela está inscrita a mesma palavra que produz a ilusão da chuva gelada e das estrelas que explodem bem longe daqui. Escolham suas espadas. A minha estava encravada na pedra.

FERNÃO GOMES