domingo, 29 de dezembro de 2013

O CHAMADO DA NOITE


Quisera pudesse despertar os tremores que sinto, quando, calado, contemplo a tela esférica de seus olhos. Mas, ao pensar nessa impossível tarefa, sepulto em mim a ilusão do que poderia ter sido e fico, uma vez mais, de mãos vazias. Se eu dissesse uma palavra, uma única e providencial palavra, talvez pudesse ver, em seu silêncio, como são produzidas as lágrimas, e, sem hesitar, num único instante, tomaria de assalto todas as tecnologias celestiais que inventaram o seu nome e a razão de ser daquilo que se move em seu corpo; se eu olhasse para trás, ou para o lado, talvez meus olhos encontrassem os seus, e, naquele instante, naquele absoluto e singular instante, todo o seu ser cibernético possivelmente se sensibilizasse com essa verdade que estremece o que em mim ainda está em construção. Mas não disse uma única palavra, talvez a única palavra, e não vi suas portas se abrirem, perdi o momento de me apoderar das tecnologias celestiais que inscreveram seu nome em tudo o que existe; também não olhei para trás ou para o lado, nossos olhares não se encontraram e só agora percebo quanto fiquei sozinho, esquecido em algum canto de minhas ruínas. O que não fiz é o que espero fazer numa outra espécie de realidade, talvez uma realidade sonhada, mas tão real quanto a palavra que não disse, tão verdadeira quanto o olhar para trás que não aconteceu. Nesse instante, sepulto o encanto que não partilharei e permaneço calado, ouvindo a tênue sonoridade do que poderia ter sido, uma ilusão que se afasta e se desfaz pelos espaços insondáveis dentro de mim, entre as estrelas.

FERNÃO GOMES

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

QUANDO A NOITE CAI (velha canção contemporânea)

Quando a noite cai, uns após outros, vão os prosadores, em silêncio, à beira do abismo. E ali, transidos, lançam olhares ao grande vazio. Quando a noite cai, uns após outros, vão os prosadores, em silêncio, à beira do abismo. E ali, tolhidos, fixam olhares nas pedras do fundo do abismo. Ó Deus, eu vejo quão profundo é o vazio, eu vejo quão tolos somos nós, o abismo está em nós. Quando a noite cai, nas últimas luzes do dia, os prosadores descem, seguindo as trilhas, à beira do abismo. E ali, perdidos, contemplam o fundo do abismo.  Ó Deus, eu vejo quão profundo é o vazio, eu vejo quão tolos somos nós, o abismo está em nós. Ó Deus, por que também vou para a beira do abismo? Quão profundo é o abismo; o abismo somos nós.

a. o.

FERNÃO GOMES

sábado, 20 de julho de 2013

A SOMA DOS DIAS


Lembro-me vagamente de palavras lançadas ao vento frio, naqueles corredores extensos. Eu não podia ver o fim daquelas paredes altíssimas, tão longínquas e escuras, tão indevassáveis nas alturas e nas sombras de uma ilusão em forma de perspectiva. Ela dizia, sorrindo: “Venha passear comigo pelos campos sulfurosos da Terra.” Eu me esforçava para alcançá-la, impunha-me forças descomunais, ação aflitiva de músculos espartanos, mas ela se dissolvia e escapava por entre os meus dedos, como um vapor fugidio, como uma paixão que se desfaz ao menor movimento. 

FERNÃO GOMES

quarta-feira, 10 de julho de 2013

PROVENÇAL


Senhora, foi preciso que eu sangrasse vagarosamente, feito um arcanjo quântico, em busca de crepúsculos escarlates; foi preciso que eu atravessasse os lagos de sangue e sentisse o fel em meus dentes, como quem digere o metal amargo e translúcido; foi preciso que eu ficasse apenas com a memória do vento frio, além da álgida e pungente sensação de ter nada em minhas mãos; foi preciso que seu falso punhal me trespassasse para que eu compreendesse que seus esconderijos são invenções de temor e vazio. Suas máscaras são ilusões que se corrompem tenuemente como os delicados círios, diante do fogo implacável. Eu sou esse fogo, a chama diante da qual tudo se revela. Suas criações, tênue Senhora, serão nada mais que vultos desaparecendo, tristemente, como hologramas efêmeros, nas avenidas assombrosas de um solitário disco rígido.

FERNÃO GOMES

segunda-feira, 1 de julho de 2013

FRAGMENTO


Eu tentei, mas não foi possível conter a lágrima. Agora compreendo que nela está inscrita a mesma palavra que produz a ilusão da chuva gelada e das estrelas que explodem bem longe daqui. Escolham suas espadas. A minha estava encravada na pedra.

FERNÃO GOMES

quarta-feira, 1 de maio de 2013

DÓNDE ESTÁS MI AMOR?



Não vou seguir suas pegadas feito animal obcecado por sangue e carne: sou mais que morcego e lobo, mais que as ficções com as quais você sonha todas as noites.

FERNÃO  GOMES