Não
sei ao certo como começar esses registros: a memória é um labirinto
interminável com centenas de passagens e armadilhas que podem conduzir a outros
mundos também intermináveis. E depois de todos aqueles eventos, que fizeram de
nós atores singularmente únicos, receio que eu não esteja em condições de
afirmar ou negar o que quer que seja, categoricamente. Eu todo sou um abismo de
dúvidas; tudo em mim é instabilidade e inquietude. Por isso tenho hesitado
diante da ideia de assumir esse papel, de ocupar o lugar de outro, ainda que
momentaneamente. Tenho hesitado diante de mim mesmo, é verdade. Mas agora não
vislumbro outra possibilidade a não ser a de reinventar os papéis e, se me
permitem, gostaria de começar meu trabalho com um pequeno relato que,
subtraídas as hipérboles naturais da emoção e preenchidas as fissuras que ela
mesma inscreve na memória, pode trazer alguma luz ao que aconteceu conosco. Mas
narrativas são ambíguas, como se sabe, e em muitos casos trazem mais sombras e
névoas do que nossa compreensão é capaz de assimilar. Sua subjetividade pode
deslocar percepções ou turvar aquilo que os olhos conseguem perceber, que é sempre
uma fração do que poderíamos e nunca é o que realmente deveríamos ver. A
respeito desse detalhe, um pensador afirma o seguinte:
Ele está no limiar da descoberta
impressionante, já familiar aos pintores, de que não há figuras visíveis em si,
de que nem o contorno da maçã nem o limite do campo e da pradaria estão aqui ou
ali, estando sempre aquém ou além do ponto onde se olha, sempre entre ou atrás
daquilo que se fixa, indicados, implicados, e mesmo muito imperiosamente
exigidos pelas coisas, sem serem coisas eles próprios.
(MERLEAU-PONTY,
p. 38).
Não
sei dizer se compreendo essas palavras, apesar de muito refletir sobre seu
conteúdo. Sinto que há nelas um embuste, um artifício que não consigo traduzir,
que não consigo agarrar completamente. Mas vamos em frente, porque afinal eu me
propus a construir um relato, uma narrativa que talvez preencha expectativas
quanto ao que realmente aconteceu naqueles três dias. Esta é, aliás, a razão
pela qual pus a pena na mão, como se costuma dizer, a razão que me traz aqui e
agora diante de quem me lê. Mas devo confessar que nunca fiz algo semelhante:
meu papel, naquela estação experimental, era outro: eu atuava como uma espécie
de engenheiro de gêneros, um manipulador de realidades, um tipo muito especial
de tecnólogo de mundos. Por essa simples e essencial razão não me habilitei,
pelo menos não inteiramente, para essa tarefa de registro e documentação. Outro
sujeito era o responsável pela construção de inventários; eu construía mundos. E
agora vou dizer como foi. Mas antes vou interromper o registro, porque ainda não
estou me sentindo à vontade. Ele ficará suspenso por tempo indeterminado.
REFERÊNCIAS
BELTING, Hans. O fim da história da arte. São Paulo: Ed. Cosac Naify, 2006.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
CARLSON, Marvin. Performance. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.
GOMES, Fernão. Desconstrução. São Paulo: Ed. Scortecci, 2005.
GOMES, Fernão. Desconstrução. São Paulo: Ed. Scortecci, 2005.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac
Naify, 2004.
O’DOHERTY, Brian. No interior do cubo
branco. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2007.
FERNÃO GOMES