sábado, 26 de maio de 2012

ARQUIVO


Não sei ao certo como começar esses registros: a memória é um labirinto interminável com centenas de passagens e armadilhas que podem conduzir a outros mundos também intermináveis. E depois de todos aqueles eventos, que fizeram de nós atores singularmente únicos, receio que eu não esteja em condições de afirmar ou negar o que quer que seja, categoricamente. Eu todo sou um abismo de dúvidas; tudo em mim é instabilidade e inquietude. Por isso tenho hesitado diante da ideia de assumir esse papel, de ocupar o lugar de outro, ainda que momentaneamente. Tenho hesitado diante de mim mesmo, é verdade. Mas agora não vislumbro outra possibilidade a não ser a de reinventar os papéis e, se me permitem, gostaria de começar meu trabalho com um pequeno relato que, subtraídas as hipérboles naturais da emoção e preenchidas as fissuras que ela mesma inscreve na memória, pode trazer alguma luz ao que aconteceu conosco. Mas narrativas são ambíguas, como se sabe, e em muitos casos trazem mais sombras e névoas do que nossa compreensão é capaz de assimilar. Sua subjetividade pode deslocar percepções ou turvar aquilo que os olhos conseguem perceber, que é sempre uma fração do que poderíamos e nunca é o que realmente deveríamos ver. A respeito desse detalhe, um pensador afirma o seguinte:

Ele está no limiar da descoberta impressionante, já familiar aos pintores, de que não há figuras visíveis em si, de que nem o contorno da maçã nem o limite do campo e da pradaria estão aqui ou ali, estando sempre aquém ou além do ponto onde se olha, sempre entre ou atrás daquilo que se fixa, indicados, implicados, e mesmo muito imperiosamente exigidos pelas coisas, sem serem coisas eles próprios.
(MERLEAU-PONTY, p. 38).

Não sei dizer se compreendo essas palavras, apesar de muito refletir sobre seu conteúdo. Sinto que há nelas um embuste, um artifício que não consigo traduzir, que não consigo agarrar completamente. Mas vamos em frente, porque afinal eu me propus a construir um relato, uma narrativa que talvez preencha expectativas quanto ao que realmente aconteceu naqueles três dias. Esta é, aliás, a razão pela qual pus a pena na mão, como se costuma dizer, a razão que me traz aqui e agora diante de quem me lê. Mas devo confessar que nunca fiz algo semelhante: meu papel, naquela estação experimental, era outro: eu atuava como uma espécie de engenheiro de gêneros, um manipulador de realidades, um tipo muito especial de tecnólogo de mundos. Por essa simples e essencial razão não me habilitei, pelo menos não inteiramente, para essa tarefa de registro e documentação. Outro sujeito era o responsável pela construção de inventários; eu construía mundos. E agora vou dizer como foi. Mas antes vou interromper o registro, porque ainda não estou me sentindo à vontade. Ele ficará suspenso por tempo indeterminado. 

REFERÊNCIAS 
BELTING, Hans. O fim da história da arte. São Paulo: Ed. Cosac Naify, 2006.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
CARLSON, Marvin. Performance. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.
                   GOMES, Fernão. Desconstrução. São Paulo: Ed. Scortecci, 2005.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
O’DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2007. 

FERNÃO GOMES