A luz do monitor imprime os números nos
olhos do astrônomo: ele observa as lentas variações da análise espectroscópica
do asteroide, em sua passagem pela Terra. Faz anotações sobre o comprimento das
ondas eletromagnéticas, bebe qualquer coisa fumegante por uma caneca de louça e
continua observando em silêncio, cingido pela solidão de Arecibo. A solidão é
um tremor pelo outro; é o que quero esquecer, mas não posso; é o que quero lembrar,
mas não tenho. Na mesma noite, na Avenida Paulista, o gaitista de terno branco
executa em pé o Superhomem do Gil,
fazendo fundo à tristeza de um travesti cujas lágrimas desfazem a maquiagem
espessa. Ele olha para o céu, em busca de um sinal, mas muito além de suas
retinas há apenas um asteroide que fende o espaço, indiferentemente, exibindo sua
porosidade sideral. A noite é fria. O vento, esse fantasma, percorre as
esquinas da Defensa, onde amanhã estaremos entre os argentinos, contemplando as
ruínas da era de ouro. Num súbito encanto, um taxista encontra o filho distante
no espelho retrovisor. O mesmo vento que imperdoavelmente nos enreda e a mesma
algidez que esconde nossa límpida ternura deslizam pelos terraços de Havana,
onde Manuel “Puntillita” Licea materializa-se, feito aparição. Encostado a um
vão de parede, ele acende o charuto, lança o fósforo na escuridão cubana, como um estranho asteroide em chamas. Sorri, com discreto
movimento dos lábios, enquanto, em meio às baforadas, ouve ao fundo o Chan Chan, do Buena Vista Social
Club.
para Daniel Simões
FERNÃO GOMES