Ela
alcançou o terraço, ofegante, o corpo encharcado pela chuva fina. Tirou os
sapatos, que laceravam os pés, enquanto puxava o vestido longo, tentando
livrá-lo inutilmente da água que escorria pelo chão. “Está procurando por
isso?” A Senhora, sentada numa cadeira sob um baldaquino, exibia entre os dedos
o brinco que ela recém-perdera. “Aproxime-se.” Sorridente, ofereceu-lhe num
gesto a cadeira ao lado. Sentada confortavelmente e fumando por uma piteira,
ela disse: “Quantas indagações há em seu olhar. Quisera pudesse responder a
todas elas.” “E não pode?”, perguntou a Moça. “Algumas, talvez, a começar pela
minha identidade. Sou apenas uma voz, uma imagem de tudo quanto seu sistema de
crença é capaz de assimilar, sem fraturas emocionais, naturalmente.” Deu uma
nova baforada, com certo artificialismo cinematográfico, e estendeu o brinco.
“Vamos, pegue-o de volta. Não desejo outra marca de ausência além daquelas com
as quais você fez inscrições em sua alma.” Lágrimas desprenderam-se dos olhos
da Moça e se desfizeram no rosto ainda molhado. “Não estamos aqui para tratar das
questões previsíveis desse mundo: constrangimentos biológicos sazonais,
submissão histórica diante do patético discurso masculino. Essas ocorrências não
passam de encenações ordinárias.” Outra baforada e disse: “Seu mundo de sonhos
é um lugar solitário.” A Moça continuava chorando, em silêncio. “O que se
perdeu é mais do que apenas um brinco. Mas lembre-se, querida, lembre-se
daqueles campos vazios.” Uma súbita revoada de corvos cruzou o céu noturno,
quase resvalando os cabelos encharcados da Moça, que repentinamente percebeu-se
sozinha, sentada na mesma cadeira, exposta à chuva que se tornara intensa.
Deixou o terraço como um pequeno barco que se desprende do cais e vagarosamente
desaparece nas águas silenciosas.
m.
q.
FERNÃO GOMES
Li, reli, reli mais uma vez... A cena da moça me encantou. Quem será a moça? Hmmm... Mistério. Também escrevo sempre que posso para uma musa inspiradora. Muito bom o texto. Parabéns!
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