Não
me esqueço; não pelo constrangimento de estar diante de meu próprio duplo, mas
pelo pavor indescritível que senti ao entrever a tênue e perfeita camada de
assombro que move todas as coisas. Ele estava em pé, do lado de fora do saguão,
exposto ao vento frio e à chuva fina, olhando através da grande parede de
vidro. Não parecia fixar-se em mim, embora eu pressentisse nele uma vaga consciência
de minha presença evanescente. Seus olhos percorriam os espaços, observando o movimento
dos vultos que por ali se deslocavam. Eu me sentia como se sangrasse por uma
única ferida, a mesma por onde meu ser se consumia, obliterando-se no ritmo do
fio de sangue que deslizava pelas curvas deste corpo emprestado, na mais
perfeita quietude, na mais inevitável e límpida crueldade. Mas ele desapareceu,
repentinamente, sem que eu pudesse ao menos antever seus movimentos e suas
intenções. Depois daquela tarde, vi-o, certa noite, em minha cama, dormindo por
mim, encolhido sob a coberta, como se tivesse frio. Desde então, sua presença
tornou-se mais frequente, mas não menos ostensiva: às vezes, ele senta-se à
mesa e almoça em meu lugar, faz musculação, dá voltas na pista do ginásio, toma
café, envia emails. Nas redes sociais, não sei quem segue ou é seguido; e
absolutamente desconheço a imagem com que me identifico, bem como o nome que
sob ela se inscreve. Não sei o quanto de mim esse outro conhece. Talvez não
seja apenas um, mas centenas como eu, centenas de egos que constituem a
arquitetura de uma alma grupal. É bem possível que eu seja uma face espectral de
um Eu-Superior, a concepção mal resolvida de um deus que ainda não decidiu que
destino dar a esta construção em abismo. Pode ser que eu seja esse deus
esquecido que só agora começa a lembrar-se de si.
FERNÃO GOMES
incrível....
ResponderExcluirDe imediato este trecho lembrou-me O Homem Duplicado, do Saramago, embora a figura do duplo esteja constantemente presente na Literatura. Mas o que mais me deixou enternecido foi a noção de que, sem hesitar, a incrível e deplorável virtualidade das redes sociais acaba por substituir o que muitas vezes parece insubstituível: a própria individualidade.
ResponderExcluirUm grande abraço, Júnior!
Excelente, Parabéns.
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