De
olhos cerrados, sentindo meu ser partido ao meio, trespassado por todos os medos
que pude engendrar - e o quanto por eles me senti transido; de olhos vaporosos,
sem sequer uma imagem ou representação do que de mim se aproximava e me afligia;
sem qualquer indício de um espírito voluntarioso ou de uma bravura constituída,
mas também sem temeridades frívolas que se transmutassem em capricho, ilusão ou
veleidade; sentindo-me como quem deve ser, a cada passo, o próprio caminho, transcendi
as linhas que mantêm os homens em seus abrigos cotidianos (os mesmos que os
eximem do assombro de ser livres), e vi o quanto estes olhos puderam abarcar. Vi
as entranhas da Lua e sua estranha concavidade; vi os campos magnéticos que
constituem a grande teia da Terra - e todos eles penetravam, enfeixados, meu
chakra cardíaco; vi um bergantim silencioso e sua imperceptível ondulação na
superfície de um oceano irreal; vi as vastidões lisissímas dos potentes discos rígidos,
detentores de nossa renegada memória; vi também as misteriosas placas lógicas, ao
longo das quais se forjam avenidas simétricas e seus reinos de anjos cibernéticos;
também vi a dança das esferas: em sua dinâmica não há centro, e tudo em sua
dinâmica é o próprio centro; vi as paisagens da Patagônia e em meu delírio adolescente
apaguei, para sempre, de meus versos, as fronteiras outrora sólidas do real; vi
os álamos movendo-se, inquietos, como espectros de um país perdido; também vi
meu próprio sangue e nele se enredava uma nova trama, um novo estremecimento; vi
passarem por mim os amores e as ferocidades históricas; vi meu corpo diante de
mim, aguardando uma estranha unção; vi meu rosto e meus olhos profundos e neles
estavam inscritos a Sua face – marca inextinguível capaz de conter a
substância a que todos aspiram: a própria Centelha.
a
Jorge Luis Borges
FERNÃO GOMES
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