Está acontecendo outra vez. É como se uma
forma abominável se aproximasse, impondo-me um terror indescritível - como o
guardião de um portal. Toda vez que tenho de mexer com palavras sinto-me aterrorizado,
como que premido por vultos que me assustam. Ultimamente, elas têm me deixado assim.
Não que eu não saiba usá-las ou manipulá-las. Sei fazê-lo como jamais soubera. Mas
sinto-me inquieto porque tenho tido esquecimentos e não consigo lembrar-me delas. Eu hoje sou praticamente um aedo e meu papel é de preservação da
memória, um defensor de lembranças, de indícios de nossa humanidade, por mais
tênues que sejam ou que tenham sido. No entanto, tenho lacunas em minha mente e
não consigo lembrar-me. Se ao menos eu pudesse encontrar as palavras certas
para o que quero dizer, todas as sombras desapareceriam, todo o terror que
agora me assalta se desvaneceria. Se eu pudesse encontrar a palavra certa, uma
palavra sequer, por mais aparentemente ínfima que fosse, mas que traduzisse qualquer
indício de humanidade, que preservasse o mais insignificante traço de vida ou então
que registrasse a mais feroz e imperdoável monstruosidade, uma palavra apenas que
revelasse o encanto das coisas que se movem ou o prodígio das narrativas que se
enredam e se destecem, para provar que pelo menos algum movimento se fez, que alguma
coisa notável se passou enquanto caminhávamos pela terra. Mas não consigo
lembrar-me. Sinto apenas o vapor das palavras, suas emanações fantasmagóricas, uma
névoa que me trespassa e deixa em mim um vazio, deixa em mim vestígios de nada
e passa.
FERNÃO GOMES
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