quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

JANELAS



Não me esqueço; não pelo constrangimento de estar diante de meu próprio duplo, mas pelo pavor indescritível que senti ao entrever a tênue e perfeita camada de assombro que move todas as coisas. Ele estava em pé, do lado de fora do saguão, exposto ao vento frio e à chuva fina, olhando através da grande parede de vidro. Não parecia fixar-se em mim, embora eu pressentisse nele uma vaga consciência de minha presença evanescente. Seus olhos percorriam os espaços, observando o movimento dos vultos que por ali se deslocavam. Eu me sentia como se sangrasse por uma única ferida, a mesma por onde meu ser se consumia, obliterando-se no ritmo do fio de sangue que deslizava pelas curvas deste corpo emprestado, na mais perfeita quietude, na mais inevitável e límpida crueldade. Mas ele desapareceu, repentinamente, sem que eu pudesse ao menos antever seus movimentos e suas intenções. Depois daquela tarde, vi-o, certa noite, em minha cama, dormindo por mim, encolhido sob a coberta, como se tivesse frio. Desde então, sua presença tornou-se mais frequente, mas não menos ostensiva: às vezes, ele senta-se à mesa e almoça em meu lugar, faz musculação, dá voltas na pista do ginásio, toma café, envia emails. Nas redes sociais, não sei quem segue ou é seguido; e absolutamente desconheço a imagem com que me identifico, bem como o nome que sob ela se inscreve. Não sei o quanto de mim esse outro conhece. Talvez não seja apenas um, mas centenas como eu, centenas de egos que constituem a arquitetura de uma alma grupal. É bem possível que eu seja uma face espectral de um Eu-Superior, a concepção mal resolvida de um deus que ainda não decidiu que destino dar a esta construção em abismo. Pode ser que eu seja esse deus esquecido que só agora começa a lembrar-se de si.  

FERNÃO GOMES