quinta-feira, 28 de outubro de 2010

EVENTO

Na noite fria de Londres, dois policiais acima do peso perseguem, ofegantes, um sujeito que se dissolve num corredor, sobe um lance da escada, atravessa a marquise e salta o muro entre os edifícios. Ele é um graffiti bomber e há pouco foi surpreendido em ação, mas fugiu às autoridades e aí o vemos, rosto escondido no capuz, mochila nas costas. Durante a fuga, passa por um estêncil de Banksy, vai em direção a um beco, salta outro muro e bate com os dois pés no chão, enquanto volta os olhos para as luzes estranhas que rasgam o céu da Inglaterra. Ele não sabe, mas a terra sob seus pés tremeu tão diferente que, no extremo oeste da Mongólia, um cazaque criador de camelos sentiu o tremor, no mesmo instante, onde no entanto já se vive outro tempo, é o dia seguinte, são seis horas da manhã. Ele está sentado, fumando e olhando a paisagem deserta, enquanto o vento frio sopra em seu rosto. Os animais estão inquietos, resmungaram a noite toda. Vai ao curral, renova os fardos de ração e, sentindo-se instável como os camelos em jejum, volta os olhos para o céu e vê as luzes de Londres cortando o céu da Mongólia. Seu grito prolongado assusta instantaneamente os trabalhadores do mercado municipal de São Paulo, mas lá ainda é o dia anterior, são nove horas da noite e eles se preparam para a grande feira do amanhecer, que talvez nunca aconteça. Inquietos como os camelos da Mongólia, abandonam no chão as caixas de legumes, giram os olhos para o céu e contemplam as luzes que riscam a noite de São Paulo, sentindo tremores assim como a terra tremera sob os pés do graffiti bomber londrino.



FERNÃO GOMES

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

ENCONTRO NA GARE

Os espaços da estação foram tomados por uma névoa repentina. Ninguém esperava aquilo, pelo menos não daquele modo tão súbito, tão silenciosamente invasor. Monitores e relógios desapareceram quase que por completo; deles restariam vagas luminescências perdidas ao longo da grande gare, convertida num estranho campo de esquecimento. O ar gelado penetrava os vazios entre as colunas de mármore descomunais. Naquele instante, naquele perfeito e simétrico instante, ela se encostou num canto de parede, contraindo os músculos das costas ao contato imediato da superfície fria. “É preciso estar atenta em meio ao nevoeiro.” Ela se assustou com a senhora encostada à parede, ao seu lado. Ficou olhando, sem reação, tremendo de frio. “Tome; use isto.” Pôs com delicadeza um casaco sobre seus ombros, sorriu sem mostrar os dentes e se afastou, desfazendo-se na névoa. “Não perca seu trem. A hora se aproxima.” Um súbito cheiro de fritura e café construiu imagens em sua mente e despertou o ideal de família há muito adormecido. Onde estarão? Quem eram eles? Instintivamente ela olhou para cima, a fim de identificar, no jogo de luzes e sombras, as gotas de chuva, que parecia ter recomeçado. Só então entendeu que estava chorando. Enxugou os olhos na manga do casaco, fez uma prece com quaisquer palavras, para encontrar nelas o fogo ao redor do qual encolheria seu ser, e desprendeu-se da parede, em direção à plataforma de embarque.    


FERNÃO  GOMES