terça-feira, 28 de dezembro de 2010

SEM TÍTULO

Olá, pessoal. Gostaria, primeiro, de agradecer a todos vocês pelas visitas ao Zona Fronteiriça, ao longo de 2010, pela leitura dos textos e pelos comentários enviados, quer seja no próprio blog, quer por emails ou mesmo pessoalmente. Foram todos muito amáveis e generosos. Em 2011, vou continuar com a publicação das micro-narrativas, uma a cada semana, mais ou menos, pois fazem parte de um projeto literário. Também serão publicados outros trabalhos que, neste momento, estão em fase de elaboração. Por enquanto, deixo outra narrativa (a última de 2010) que ainda não tem título. Dessa vez, decidi propor um pequeno desafio àqueles que, pacienciosamente, visitam o Zona. Leiam o texto e elaborem um título para ele. Um deles figurará como definitivo e será exibido no lugar do "sem título". Trata-se de uma proposta simples através da qual pretendo saber como estão lendo os textos publicados no Zona. Uma vez mais, agradeço sua generosidade e desejo um 2011 excepcional a todos nós. Abraços carinhosos e boa leitura. 



 Muito tempo se passara desde que ele tivera de deixar o país. Lembrava-se perfeitamente de toda a família, de todos aqueles com quem convivera, dos rostos de cada um deles: conservara-os em si com um realismo vívido só comparável, como ele próprio dizia, aos pintores holandeses do século XVII. Compusera quadros com ruínas de seu passado; sobrevivera aos anos de exílio em nome dessas imagens; suportara as lacerações da distância e da solidão, recriando, dia a dia, a nitidez de cada olhar, de cada sorriso, urdidos no fluir caudaloso dos anos. Mas os tempos de militarismos latino-americanos e suas ferocidades foram aplacados e deram lugar a outras composições sociais que o trouxeram de volta à terra onde nascera. No aeroporto, antes de embarcar, comprou brinquedos ao sobrinho, com quem passara ludicamente os últimos dias daqueles anos. Ao encontrá-lo, viu diante de si um rapaz de dezoito anos, que o recebeu amavelmente, acompanhado de sua namorada. Ele ficou parado, em silêncio, segurando os brinquedos que acabara de comprar, enquanto sentia as lágrimas escorrerem pelo rosto.

FERNÃO GOMES

sábado, 18 de dezembro de 2010

SONATA ANCESTRAL

O taxista atrita as mãos, aproximas-as da boca, como se compusesse uma prece, bafeja nelas e as esconde nos bolsos do casaco. Olha de relance no espelho retrovisor: no banco traseiro, o passageiro solitário permanece imóvel, olhando nostalgicamente, pelo vidro molhado, as luzes do semáforo, refletidas no asfalto. O taxista liga o rádio e, por alguns instantes, a música de Moby[1] traz a chuva para dentro do carro. Uma luz intensa, possivelmente do poste mais próximo, projeta-se no veículo e chega a ofuscar os efeitos do semáforo no asfalto. O taxista curva-se sobre o volante e olha para cima, protegendo os olhos, mas sente no corpo um cansaço excessivo e, sonolento, acomoda-se no banco e adormece. No rádio, que por um instante perdera a sintonia, continua a mesma canção, enquanto as cores do semáforo alternam-se no asfalto e no banco traseiro, que agora está vazio.
 

FERNÃO  GOMES

[1] Whispering Wind.

domingo, 12 de dezembro de 2010

PÉROLA

Tantas vezes meus olhos percorreram suas formas sem que eu tivesse o menor vislumbre do que agora vejo, sem que eu sequer compreendesse o assombro que desde o primeiro instante fizera de mim um espectro entre tantos que contemplam sua imagem. No entanto, na pungente tarefa da contemplação, sinto-me eu mesmo trespassado pelo poder inominável de seu olhar, feito um narciso sem defesas, devassado diante da língua intraduzível que desliza em seus lábios entreabertos, pelos quais se insinuam promessas e precipícios. E dos desvios inexplicáveis da beleza, que simula ilusões tanto quanto se enreda com ironias, surge, no campo nebuloso de sua imagem, o singular pingente, fonte de inquietudes e abismo em cujas profundezas todo olhar se consome e toda luz se extingue.

para J. Vermeer

FERNÃO GOMES

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

VISÃO


Um vulto atravessou o cruzamento de corredores e, antes que desaparecesse atrás da grande gôndola de livros, pareceu olhar em minha direção. Era uma biblioteca de vastidões, corredores e perspectivas invencíveis, andares hipnóticos que se arrojavam às nuvens, trespassados por escadas saídas das visões de Escher. Em meio ao silêncio das estranhas criaturas que se moviam por aquelas amplidões geladas, saí em busca do vulto e deparei-me com uma porta entreaberta. Empurrei-a com os pés, levemente, e entrei. “Fernão Gomes: por que está me seguindo?” Ela estava bem acomodada numa poltrona, vestido longo, pernas cruzadas. A fumaça do cigarro ondulava, finíssima, à luz da luminária disposta no criado-mudo. “Se você me deseja, devo dizer, sem cerimônias, que estou somente amando a barata. E é um amor infernal.” “Mas você não é quem antes me pareceu ser”, respondi. “Nem se parece com ela.” “Nada em mim era como aquilo que você conheceu. Eu me pareço com as coisas que invento, com as coisas que ninguém vê. Você sabe realmente para o que está olhando?” De repente, dezenas de Clarices de idades diferentes estavam em pé, dispostas ao redor, olhando em minha direção. Contemplei-as por um instante, mas fui interrompido pela pós-imagem dela: “Você também morde a própria cauda. Terá o seu esplendor.” Súbito, tudo ao meu redor converteu-se em trevas e eu senti na ponta dos dedos a lombada do livro que segurava, quando seu vulto primeiro atravessou o corredor. Eu voltara ao mesmo lugar ou então nunca dali saíra. Deixei o livro e, sentindo frio, afastei-me pelo corredor e fui me dissolvendo na perspectiva, como um holograma no fim de tarde.


FERNÃO GOMES

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

HOTEL NACIONAL

“Sua presença é uma onda, uma perturbação para os meus sentidos. Sua presença é tão simples e inexplicável como uma mulher dentro de um homem. Mas sua presença não é uma inovação em mim: ela me dá mais de tudo quanto já tenho e sinto, ela me dá mais do mesmo. Sua presença é repetição; seu olhar percorrendo meu corpo é repetição; sua ingenuidade simulada é repetição; seu sentimento amoroso, constrangedor e excessivamente teatralizado, é repetição; o sexo entre nós é repetição. Mesmo assim eu desejo todas essas repetições, bem como os intervalos sugeridos entre elas, porque neles posso descobrir esconderijos, porque neles posso ser outra, posso ser outras. Sua presença em minha vida é um fantasma percorrendo corredores sombrios. Eu desisti da ilusão de ser feliz; não tenho mais esse tipo de frivolidade. O próprio amor tornou-se um horror social: nós fizemos dele um monstro. Nunca mais se aproxime de mim, até a semana que vem.” Ela se levantou da poltrona e deixou o quarto. Enquanto isso, ele ficou sentado na beira da cama, olhando quieto a lâmina de luz que penetrava o ambiente pela fissura da porta que ela não fechara completamente.


FERNÃO  GOMES


sábado, 13 de novembro de 2010

DÚVIDA

Ela subiu a escadaria e entrou na grande catedral. Sentiu-se aliviada ao transpor a passagem que a apartava do mundo dos homens, mas também surpreendeu-se constrangida diante da escala descomunal. Havia poucas pessoas pelos bancos, mas ela escolheu, criteriosamente, um lugar e acomodou-se. “Não vim agradecer, não vim em busca de bênção ou perdão: há muito meu repertório não é mais o mesmo. Vim ao encontro de um interlocutor, apresentar-me a mim mesma como um problema, porque a essa altura das coisas, somadas todas as representações, inclusive os espetáculos frustrados, não estou certa de que tenha restado muito das ilusões intelectuais, que parecem quedar-se, afinal, tartamudas e anafóricas. Tantos anos; títulos universitários; reconhecimento profissional; e tenho as mãos vazias. Depois de tudo, talvez pareça cinismo, senão hipocrisia, reduzir uma existência a um paradoxo poético. E é bem possível que não seja o único, porque também não sei o que dizer a respeito das religiões que deixaram em mim uma metafísica fraturada e uma explícita incompetência espiritual: não sei o que dizer de um deus ou de deuses, mas erigi altares que agora se desmoronam. Sobre bens materiais, obtive o bastante para o grande jogo das vaidades, mas como falar de posses, se me sinto escorrer como areia entre dedos? Como falar de posses, se o amor converteu-se numa construção irônica, num lugar cheio de cicatrizes? O que afinal restou de tudo?” Contemplou longamente os arcos ogivais da grande nave; sentiu-se sozinha como um pináculo. Levantou-se, retornou pelo mesmo corredor e, quando alcançou o portal, o limite entre os mundos, estremeceu: as pessoas, os edifícios, os veículos, as árvores – tudo havia desaparecido.

FERNÃO  GOMES

domingo, 7 de novembro de 2010

LUGAR COMUM

Na lan house as amigas estavam na mesma baia e partilhavam conteúdos. “É esse aqui”, disse uma delas, tocando levemente o monitor, que produziu ondulações, do centro para a circunferência. Entreolharam-se, incrédulas, olhos admirados. A garota tocou o monitor outras vezes e ali ficaram ambas, sob o encantamento das ondas, até perceberem que a tela era suscetível a ponto de penetrá-la. Uma delas forçou o dedo e, subitamente, quase toda a mão desapareceu dentro do monitor. “Fulana, que é isso?”, disse a amiga, enquanto a outra permanecia em silêncio, girando a mão submersa. Tentou puxá-la, mas a mão estava presa e, quanto mais força fazia, algo a sequestrava para dentro da tela. Respirou fundo e deu um impulso, mas, ao invés de sair, todo o seu braço entrou pelo monitor, que o absorveu até os ombros. Ela tentava voltar, apoiava-se com os pés no chão e na quina da mesa, enquanto com a outra mão segurava nas bordas escuras da tela. “Que é isso, Fulana? Para com essa brincadeira. Não tem graça nenhuma.” Mas a Fulana mal conseguia ouvir a amiga, lutava para não ser engolida, expressando nos olhos o mesmo horror da Medusa, de Caravaggio. “Por favor, alguém pode ajudar?”, pedia a amiga, enquanto tentava trazer a garota de volta, puxando-a pela cintura. Os usuários olhavam, mas voltavam aos monitores, em silêncio. Um deles levantou-se e tentou segurar a garota, mas não teve forças: ela foi puxada até a cintura e, num golpe fatal, todo o corpo desapareceu sob a tela do monitor. Houve um momento de silêncio interrompido apenas pela chegada do gerente: “Com licença. Não se preocupe. O que acabou de acontecer não é comum, mas é plausível.” O rapaz retornou à sua baia. A amiga sentou-se e permaneceu imóvel, quieta. Levou algum tempo para assimilar o fenômeno, mas depois desse intervalo disse: “Preciso ver meus emails.” O gerente respondeu: “Fique tranquila. Por conta desse incidente, a primeira hora será grátis, com direito a um refrigerante. Vou reiniciar o computador. Deseja mais alguma coisa?” “Não, obrigada.” Observou o computador abrir a área de trabalho e, ainda em silêncio, sentou-se com o refrigerante nas mãos e atualizou sua correspondência.



FERNÃO GOMES

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

EVENTO

Na noite fria de Londres, dois policiais acima do peso perseguem, ofegantes, um sujeito que se dissolve num corredor, sobe um lance da escada, atravessa a marquise e salta o muro entre os edifícios. Ele é um graffiti bomber e há pouco foi surpreendido em ação, mas fugiu às autoridades e aí o vemos, rosto escondido no capuz, mochila nas costas. Durante a fuga, passa por um estêncil de Banksy, vai em direção a um beco, salta outro muro e bate com os dois pés no chão, enquanto volta os olhos para as luzes estranhas que rasgam o céu da Inglaterra. Ele não sabe, mas a terra sob seus pés tremeu tão diferente que, no extremo oeste da Mongólia, um cazaque criador de camelos sentiu o tremor, no mesmo instante, onde no entanto já se vive outro tempo, é o dia seguinte, são seis horas da manhã. Ele está sentado, fumando e olhando a paisagem deserta, enquanto o vento frio sopra em seu rosto. Os animais estão inquietos, resmungaram a noite toda. Vai ao curral, renova os fardos de ração e, sentindo-se instável como os camelos em jejum, volta os olhos para o céu e vê as luzes de Londres cortando o céu da Mongólia. Seu grito prolongado assusta instantaneamente os trabalhadores do mercado municipal de São Paulo, mas lá ainda é o dia anterior, são nove horas da noite e eles se preparam para a grande feira do amanhecer, que talvez nunca aconteça. Inquietos como os camelos da Mongólia, abandonam no chão as caixas de legumes, giram os olhos para o céu e contemplam as luzes que riscam a noite de São Paulo, sentindo tremores assim como a terra tremera sob os pés do graffiti bomber londrino.



FERNÃO GOMES

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

ENCONTRO NA GARE

Os espaços da estação foram tomados por uma névoa repentina. Ninguém esperava aquilo, pelo menos não daquele modo tão súbito, tão silenciosamente invasor. Monitores e relógios desapareceram quase que por completo; deles restariam vagas luminescências perdidas ao longo da grande gare, convertida num estranho campo de esquecimento. O ar gelado penetrava os vazios entre as colunas de mármore descomunais. Naquele instante, naquele perfeito e simétrico instante, ela se encostou num canto de parede, contraindo os músculos das costas ao contato imediato da superfície fria. “É preciso estar atenta em meio ao nevoeiro.” Ela se assustou com a senhora encostada à parede, ao seu lado. Ficou olhando, sem reação, tremendo de frio. “Tome; use isto.” Pôs com delicadeza um casaco sobre seus ombros, sorriu sem mostrar os dentes e se afastou, desfazendo-se na névoa. “Não perca seu trem. A hora se aproxima.” Um súbito cheiro de fritura e café construiu imagens em sua mente e despertou o ideal de família há muito adormecido. Onde estarão? Quem eram eles? Instintivamente ela olhou para cima, a fim de identificar, no jogo de luzes e sombras, as gotas de chuva, que parecia ter recomeçado. Só então entendeu que estava chorando. Enxugou os olhos na manga do casaco, fez uma prece com quaisquer palavras, para encontrar nelas o fogo ao redor do qual encolheria seu ser, e desprendeu-se da parede, em direção à plataforma de embarque.    


FERNÃO  GOMES


quinta-feira, 30 de setembro de 2010

HERÓI

Eu queria cometer um crime e ser condenado por ele. Mas não apenas um crime sórdido, hediondo e sangrento, como costumam ser os crimes dos assassinos em série, dotados de mentes artisticamente complexas e corações indevassáveis, que engendram e executam nas trevas seus ódios ordinários e suas vinganças excepcionais. Não; esses crimes são desafortunadamente pontuais e convergentes. Eu queria um crime com outras proporções, um crime intenso o bastante para calcinar as inocências; contundente o bastante para devastar as ferocidades; um crime superlativamente extremo; um crime-espetáculo, representação, que expusesse a mais obscena e insuportável humanidade; um crime que trouxesse aos olhos aquilo de que mais as pessoas se escondem; que fosse cometido não às escondidas, mas à luz do dia, à luz mais ostensiva do dia, para que todos pudessem de algum modo protagonizá-lo comigo. Certamente, minha condenação seria assim: “O prestidigitador é culpado e será expulso da polis. Ele nos iludiu, ele mentiu para nós.” Em seguida, eu seria encerrado numa cela incrivelmente hermética, nas profundezas da terra, até o final dos tempos. Enquanto isso, os juízes voltariam a contemplar as oscilações das próprias sombras, vagamente projetadas na parede da caverna.



 
FERNÃO  GOMES

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

PARA SEMPRE

Eu estava de joelhos diante do grande altar, quando senti um tremor em meu coração. Cobri-me com o capuz e fiquei quieto, esperando por uma oscilação tênue no ar rarefeito. Súbito, aquele perfume ultra-azul, hipnótico como as flores de Havona, instalou-se nos vazios da catedral: “É estranho o sentimento de revolta que toma posse de meu coração, toda vez que nos encontramos.” Levantei-me e, ao contemplá-la de frente, confesso que fiz um esforço tremendo para não cair outra vez aos seus pés, seduzido por aquela imaterialidade elétrica que parecia esplender-se em todas as direções, mas inexplicavelmente contida por uma transmecânica que tornava possível envolvê-la em meus braços, durante séculos. “São defesas forjadas por mim mesma, eu sei. Eu te amo. Mas não posso; simplesmente não posso.” Era um fim de tarde e eu fiquei parado, sozinho entre as capelas radiantes, transido na fronteira dos vazios extensos que se abriam monstruosos diante de mim. Ela desapareceu, dissolvendo-se entre os arcos ogivais da grande nave, não sei como fez aquilo. Mas deixou em meus lábios um chamado, um sinal inscrito em mim mesmo, uma distinção que há muito ela também leva consigo.   


FERNÃO GOMES

sábado, 4 de setembro de 2010

AGNÈS SOREL

Ela entra no quarto para despir-se, mas sua nudez não se revelará assim, de um instante a outro, como parco objeto que se abre repentinamente sem as essenciais oscilações da expectativa ou como gesto vazio de quem já se esqueceu do esplendor do rito. Não; absolutamente não. Ela descobre o seio com o rigor calculado de quem transita em zonas fronteiriças – nem a transcendência da mãe, nem a obscenidade da amante. Ao livrar-se do vestido e abandoná-lo no chão, deixa transparecer, para si mesma, um vago vestígio de pudor, mas é possível que pudor, neste caso, seja apenas um artifício. A verdade é que a essa altura a máxima distância que nos separa de suas entranhas é a última peça. Vamos então tirá-la, mas não faremos isso pelo texto, não seria amigo suprimir a possibilidade de o leitor elaborar ele próprio esse deleite. Deixamos aqui uma lacuna, um interstício, e muitos mistérios. Ela agora está deitada de bruços, completamente nua, balançando as pernas entreabertas, vagamente entretida com anotações de um diário – eu te odeio, eu te amo; eu te odeio, eu te amo; eu te odeio, eu te amo. Logo, o rei entrará por aquela porta.

FERNÃO  GOMES

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

PRÉ-HISTÓRIA

Os voluntários entraram no hangar de lançamento dez minutos antes do tempo estabelecido. O ar gelado percorria os grandes espaços daquela estação avançada, instalada, por razões óbvias, na solidão dos cumes, quase entre nuvens. Em seus trajes especiais, pareciam nebulosas de partículas eletrônicas, aparições vaporosas no crepúsculo. Suas cabeças ainda descobertas projetavam-se discretamente na camuflagem evanescente, sugerindo naquela translucidez uma inexplicável potência hierática. Dez minutos. O que fazer com esse lapso de tempo, quando estavam prestes a transgredir percepções lineares? Quanto não será possível dizer em dez minutos? E quanto silêncio se tem inscrito no tecido dos milênios? O ar gelado queimava as entranhas, mas havia naquela ardência uma pressuposição de mundos, um afã de alteridades. Na breve intersecção temporal, como reconstituir uma existência cuja totalidade transfixou-se num único instante, o eterno presente? Súbito, ouviram o chamado; findara-se o tempo. Pouco depois, a esfera elevou-se no ar e, delicadamente, desapareceu, como se nunca existisse, deixando atrás de si resíduos de narrativas inacabadas e a luz silenciosa do fim de tarde.


FERNÃO GOMES

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

ZEITGEIST

No baile de máscaras os pássaros translúcidos apareceram, repentinamente. Revoaram, em silêncio, descrevendo trajetos irregulares sobre os convidados que os observavam, também em silêncio. Sua presença causou entontecimentos e enjoos nas mulheres e deixou um silvo agudo, quase imperceptível, na sensibilidade confusa dos homens. Os mordomos e as camareiras, que não foram afetados pela aparição daquelas criaturas espectrais, distribuíram calmantes, analgésicos e anti-espasmódicos para os mascarados à beira de surtos de histeria e medo. Passado o mal-estar, que os amontoou sofregamente em filas desordenadas às portas dos banheiros, retornaram à diversão. Aos poucos, ao som da música hipnótica, foram ocupando seus lugares no salão e, minutos depois, estavam completamente entregues aos delírios de seu hedonismo incurável.



P.S.: Durante a aparição das criaturas espectrais, os mascarados, extáticos, nem se deram conta de que um dos convidados, apenas um, horrorizado com o que presenciava, deixou o recinto aos gritos e lançou-se janela afora, consumindo-se naquele precipício íngreme e profundo.



FERNÃO GOMES

domingo, 8 de agosto de 2010

SOCIEDADE RANDÔMICA

Lamento, querida, mas houve um equívoco de sua parte em relação a uma palavra que na verdade eu nunca disse, mas a ouvi daquela sua amiga que veio ter comigo e, a certa altura de nossa conversação, disse-me o seguinte, minha cara, vou contar um segredo, eu me encontrei com o marido dela, naquela mesma noite, após o jantar, vivemos momentos inesquecíveis, nunca sairão de minha memória, ele é realmente um homem maravilhoso, não sei como é capaz de suportar aquela mulher, não sei como consegue viver com ela, em certo momento, diante de minhas inquietudes, ele pôs os dedos em meus lábios, olhou em meus olhos e disse, delicadamente, querida, não quero ver você banhada em lágrimas, mas minha condição limita nossos encontros, não sei até onde suportaríamos as limitações a que ficaríamos sujeitos, porque minha mulher me persegue, não me deixa em paz e usa o ciúme como revelador da efemeridade de meus sentimentos, imagine que, ainda hoje, antes do jantar, ela me disse, não se atreva, não se atreva que eu faço um escândalo, não revele ao mundo que seu nome é veleidade.

FERNÃO GOMES

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

ÍNDIOS

Instalados em acampamentos improvisados à margem da rodovia federal, os índios recebiam visitas de curiosos, de viajantes, de vendedores que lhes deixavam lembranças e presentes: uísque, tênis, antidepressivos, camisetas promocionais, cocaína, antenas parabólicas, novidades tecnológicas. Alguns deles achavam os visitantes muito engraçados e chegavam a dar piruetas de felicidade; outros entravam pela mata, cambaleando e sem destino; outros até saltavam à frente dos carros e dos caminhões, que passavam pela rodovia, em alta velocidade.


FERNÃO GOMES

segunda-feira, 26 de julho de 2010

ASCENSÃO

No metrô, seus olhares se encontram. Pela escada rolante, elas alcançam a luz da avenida.

FERNÃO GOMES

domingo, 25 de julho de 2010

O VIOLINISTA NO TELHADO

O plano era formidável. Simplesmente formidável. Bastava que funcionasse e tudo terminaria bem. Visto isto, apoiou os cotovelos no parapeito da janela, entrelaçou os dedos, transformando as mãos numa perfeita simetria (onde se produzem as culturas desse mundo), e permaneceu em silêncio, sem pensar em nada, contemplando um fio de fumaça, finíssimo, que se elevava de algum ponto próximo dali, e tecia, pacienciosamente, uma nuvem.
FERNÃO GOMES

sábado, 17 de julho de 2010

NGC 224

O digital flutuante, suspenso na esquina, marca dezoito horas. Sentado a um canto do café, ele contempla, através do vidro, os números azuis do relógio holográfico que se projetam na luz laranja do crepúsculo. O monitor clínico, fixado a um canto da parede, sinaliza que a atmosfera psicoanímica está um tanto agitada, nesse momento: alcança 7.8 na escala neuroespectral e quase permite a corporificação de fragmentos ectoplásmicos, miasmas emocionais do que restou do dia. Mas a essa efervescência proto-ontológica subjaz um vulto silencioso de amargura que põe neste mundo uma exaustão de existir nunca antes vista. Súbito, um veículo da Polícia Autônoma Setorial estaciona a poucos metros do chão e uma voz quase metálica solicita os números de registro do condutor de um Spider_G3 esférico, cuja blindagem orgânica exibe variações de cinza, verde e vermelho, tonalidades características dos modelos produzidos nos românticos anos 2160. Concluída a verificação dos dados, o veículo eleva-se no ar e, aos poucos, desaparece no céu laranja, refletindo-se na íris deste herói anônimo e quase invisível, que observa. Ele põe sobre a mesa cinco níqueis, levanta-se e, depois de lançar um olhar discreto ao Spider_G3, ainda estacionado na esquina, deixa o Café Andrômeda e afasta-se, vagarosamente, pela calçada estelar, contemplando uma possível paisagem de galáxias no horizonte distante.

FERNÃO GOMES

sábado, 10 de julho de 2010

LUA NEGRA

...porque a irracionalidade que me subjuga e me caracteriza não se satisfaz com as imaterialidades do seu romantismo sentimental e novelesco, e pra eu não me sentir incompleto e fraturado, assim como quem se sente incompleto e fraturado, eu necessito mais do que só as suas paixões metafísicas e inconfessáveis, eu necessito da fisicalidade de suas entranhas, de suas vísceras banhadas em sangue, submersas nesse plasma hipnótico e repugnante que assinala minha condição de animal danado em busca de qualquer nexo ou substância que me permita neutralizar ou aplacar essa fome, essa sede, esse desejo incontrolável de me transformar, de me transmutar, de me converter no único e absoluto sentido para a sua percepção já turvada pela irracionalidade que me subjuga e me caracteriza, já contaminada pela inevitabilidade da physis que arroja o seu corpo em direção ao meu, que conspira pela poesia que pode haver no entrelaçamento de nossos dedos e no encontro de nossos olhares, em qualquer tempo, em qualquer realidade onde essa possibilidade se converta realmente numa perturbação, num sopro sobre a superfície do lago e em cujo espelho eu vislumbre pelo menos o seu rosto, pelo menos o seu olhar, que é como começam as mitologias, mas se também essa ilusão me for subtraída, então que o mesmo absurdo que concebe estrelas e luz transmute o meu abandono num discreto perfume de suor e sangue, o primeiro sinal por conta do qual tudo começa.
FERNÃO GOMES

quarta-feira, 7 de julho de 2010

EON


As luminárias foram dispostas por toda a extensão da plataforma extrema, cujos limites revelavam os precipícios vertiginosos daqueles confins. Quando o crepúsculo manifestou-se (de fato, havia uma certa tonalidade no céu), as monjas apareceram, vindas das portas escuras do convento, silenciosas, enfileiradas, e, pouco a pouco, ocuparam os espaços daquele vasto terraço entranhado nos cumes altíssimos. Dispuseram-se por entre as lanternas que flutuavam sobre suas cabeças e permaneceram imóveis até que anoitecesse por completo. Só então se descobriram, voltaram os olhos para o céu e contemplaram o espetáculo: uma a uma, as estrelas, na imensidão de trevas, começaram a extinguir-se.
para Arthur C. Clarke
FERNÃO GOMES

sábado, 3 de julho de 2010

SCHEIN

Muito possivelmente eu tenha de percorrer outros caminhos para compreender por que, nas profundezas desse mesmo silêncio com que me constranges, forjam-se a repentina aridez dos teus lábios e a inquietude dos teus olhares absolutamente inconsequentes, que me seguem e me instigam, sob os cachos de tua falsa cabeleira vermelha.
FERNÃO GOMES

quarta-feira, 30 de junho de 2010

NARRATIVA MÍTICA

Olá, pessoal. Continuo publicando minhas construções discursivas, assim chamadas porque são experimentos textuais que entrecruzam diversos gêneros em amplos horizontes temáticos, isto é, são textos que, através de sua arquitetura estético-temática, pretendem atuar, de algum modo, no debate histórico que caracteriza nossa dicção artística e nossa singular e estranha humanidade. O texto a seguir, intitula-se, como referido, Narrativa mítica. Obrigado pela visita e boa leitura. Abraços. FG
Houve um tempo em que os fandores riscavam os céus mesopotâmicos, cobrindo longas distâncias, de um extremo a outro do Éden. Era simplesmente lindo contemplá-los em seu voo velocíssimo e silencioso. Apenas os grifos e os dragões (não os pterodátilos!) alcançaram semelhante esplendor. Mas infelizmente os fandores foram extintos e desapareceram para sempre daqueles céus longínquos. Não muito tempo depois, e sem qualquer explicação, os noditas surgiram nos céus pós-adâmicos, controlando estranhos engenhos voadores, como que saídos, misteriosamente, das páginas extraordinárias da ficção steampunk.
FERNÃO GOMES

quarta-feira, 23 de junho de 2010

GÓTICO

O fragor das grandes portas que se fecham ruidosamente foi o último sinal sonoro da Irmandade. Durante muitos eons, nada mais poderia turvar a finíssima estampa de imortalidade que se instalara na sala de armas. Nem mesmo o súbito e acústico movimento de asas, que costuma transitar pelos campos de sonhos, seria entrevisto. Nada. Nenhuma perturbação na grande câmara. Apenas os espaços e suas intrínsecas relações geométricas forjariam os ambientes marmóreos e glaciais, outrora aquecidos pela presença da Irmandade. De agora em diante, sobre as urnas álgidas, move-se um espectro de ancestralidade, um misterioso frêmito de pétalas encarnadas, como uma paixão intensa, que faz de todos os tempos um só tempo, e de todas as ilusões uma só ilusão.
FERNÃO GOMES

sábado, 19 de junho de 2010

SARAMAGO, UMA VEZ MAIS

Olá. Gostaria de fazer outra pequena homenagem ao escritor José Saramago. Desta vez, deixo uma passagem do Desconstrução, ficção que publiquei no final de 2005. Espero que, de algum modo, ele saiba, o que nesta vida (como era meu desejo) não foi possível.
Agora ele compreende que esta realidade é determinada pelo modo como ele próprio a observa, e que os modelos que se constroem ao seu redor são reflexos de sua mente, reflexos dele mesmo. Aproxima as mãos de seu rosto e as movimenta, de um lado a outro, dobra e estica os dedos, repetidamente, observando as articulações, as falanges. Em seguida, passa os dedos, com delicadeza, sobre as pálpebras, com movimentos irregulares, como que para relaxá-las, e a fim de massagear os olhos exaustos e desenganados. Ele está em busca de uma resposta, não há dúvida, mas, para o momento, o que tem são só suas mãos abertas e o olhar perplexo de quem acaba de perder as amarras que o detinham às ilusões deste mundo. Como um barco solitário, ele se desprende do cais e desliza pelas águas de um mar que se abre à sua frente, largo, profundo, silencioso.
Até a próxima.
FERNÃO GOMES

sexta-feira, 18 de junho de 2010

LUTO

Olá, criaturas. Hoje, 18 de junho de 2010, faleceu o escritor português José Saramago. Sofremos mais uma derrota. Vão-se os filósofos, os artistas, os sonhadores; ficam os algozes da humanidade, ficam os presidentes, os hipócritas. Poderia escrever muitas linhas sobre a importância de Saramago em minha vida, mas não será necessário: estou certo do que ele representa, do que em mim é, agora e para sempre, sua humanidade e sua voz contundente. Neste momento, gostaria apenas de deixar uma pequena homenagem a esse mestre extremo: um trecho de seu livro As intermitências da morte, de 2005.



Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu.



Obrigado e até a próxima.


Fernão Gomes

quarta-feira, 16 de junho de 2010

MULTICULTURALISMO

Depois de passar centenas de anos em regime de isolamento, sem sequer ter acesso à ágora, ele perdeu referências. Com a sensação de que hibernara durante alguns eons, quis saber as horas, quis saber o dia do mês, o dia da semana. Depois perguntou sobre a previsão do tempo. O carcereiro disse que chovera no dia anterior; e fazia frio. Ele encostou a cabeça na parede e sentiu umas lágrimas quentes escorrendo; o cigarro se consumia entre seus dedos.
Fernão Gomes

domingo, 13 de junho de 2010

PÓS-ESCRITO

Pouco depois (depois que muitas portas foram fechadas), o veículo movia-se, vagarosamente, naquela vastidão de trevas e luz. Quase ninguém percebeu o evento epifânico que lançara pela imensidão do cosmo a boa nova. Apenas ela, tão acostumada à solidão em seu Explorer_9, tão familiarmente íntima do pó de estrelas que sempre se fixou na sola de suas botas, apenas ela contemplou, em sua singularidade, o espectro dionisíaco, um tremor pequeno em seu coração.
para Fabiula Neubern

FERNÃO GOMES

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Olá, pessoal. Vou retomar as postagens de minhas construções discursivas, textos escritos num velho computador. Se apreciarem, maravilha. Boa leitura.




PORTAL



Ela estava sentada displicentemente no ponto extremo de uma coluna, a perna roçando o capitel dórico, logo abaixo. Lia as primeiras linhas do Castelo de Otranto, enquanto o vento quase imperceptível do entardecer movia, de leve, seus cabelos longos. De repente, sem que ela percebesse, a criatura pousou na coluna ao lado e permaneceu imóvel, contemplando a nudez de seu pé, que balançava como um pêndulo levíssimo.



FERNÃO GOMES

sábado, 29 de maio de 2010

ESTÉTICA

Vivi hoje uma experiência extrema. Na aula de Estética (História da Arte-FAAP), realizamos um seminário cujos eixos foram: O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer, e A origem da obra de arte, de Heidegger. E fechamos com o Aleph, de Jorge Luiz Borges. Um soco no estômago. Não sei ao certo como consegui chegar em casa. Ainda estou assimilando o evento, porque foi realmente um evento. Amigos invisíveis, o negócio é o seguinte: a redenção da humanidade é a arte, não há dúvida quanto a isso. A experiência estética é a própria Divindade. E nesse momento, minha sugestão pra vocês, pra todos nós, é o silêncio. Apenas o silêncio.
FG

quinta-feira, 20 de maio de 2010

VOLTAMOS



Olá. Depois de um ano, acesso, outra vez, esse ciberespaço. Agora percebo que havia criado em mim um vínculo emocional com esse lugar cultural. Isso me faz lembrar que (e é curioso) em alguns casos só percebemos que sentimos saudade quando revemos o objeto causador da saudade. Mas o que interessa é que estamos de volta. Eu e minha companhia de espetáculos. Fernão Gomes e seu teatrinho mambembe. Na medida do possível, vamos fazer a manutenção desse canteiro de obras. Por enquanto, deixo um pequeno sinal de afeto. Abraços.






INFÂNCIA
para Manuel Bandeira


O trem apitou outra vez
Como um aviso que percorre a madrugada
E, lentamente doppleriano, foi levando minha infância embora

FERNÃO GOMES