Ela volta do quarto num vestido quase curto, discretamente florido, terminando de calçar uma sandália fina, ajeitando-a no pé com o dedo indicador. Tira da geladeira umas latinhas de cerveja e as esconde num saco plástico de supermercado. Pega o baseado e diz ao ex-patrão: “Vem. Quero aproveitar esse fim de tarde.” Saem pelo corredor e sobem silenciosamente as escadas do edifício. No último andar entram por uma porta, onde se penduram avisos e advertências sobre os perigos do sistema elétrico. Pela escada estreita alcançam o terraço ocupado por máquinas, plantas e folhagens penduradas por todos os cantos: uma floresta minúscula possivelmente conservada pelo zelador do local. Avançam por entre as folhas, como se atravessassem denso bosque, em direção a um ponto escuro e oculto. Sentam-se num canto, de onde podem ver, sem ser vistos, qualquer pessoa que por ali apareça, além da paisagem suburbana e suja que se descortina em fragmentos atrás das folhagens. A índia abre as latinhas de cerveja, eles brindam e bebem. Sempre em silêncio, ela acende o baseado, fuma duas, três vezes, passa o cigarro ao sujeito, que a imita. Ele sente amortecer todo o corpo, devolve o cigarro, aproxima-se dela e beija-lhe a boca. Ela corresponde, porque era isso que queria. Pouco depois se entregam um ao outro, morrendo de tesão, enquanto as latinhas de cerveja esperam, a um canto, trocando confidências na língua que só elas entendem: “Olhe só pra esses dois”, diz uma delas. “O que é que tem?”, responde a outra. “Mais parecem uma criatura bizarra de muitos braços e pernas, rolando e se esfregando de um lado a outro.” “E o que você tem com isso?” “Eu, propriamente, nada, mas há pouco estavam ambos entre socos e hostilidades. Não se passaram minutos já estão aos beijos, abraços e carícias.” “Isso é o sexo, amiga. É assim que se explicam muitos enredos desse mundo. Humanos são contraditórios: repudiam e desejam a um só tempo as mesmas coisas.” “Como sabe tanto sobre humanos, sendo apenas uma lata de cerveja?” “Porque sou reciclável como eles. Esvaziam-me, reciclam-me, enchem-me de cerveja, dão-me um novo lacre, que é a alma estrutural das latas de cerveja, e aqui estou. Tive muitas vidas, passando de mão em mão, de boca em boca, ouvindo as narrativas dos humanos, ao longo dos anos e das estações. Se você conhece pouco sobre eles, suponho que seja uma lata nova, tem ainda muitas vidas pela frente.” “Parece que sim. O alumínio de que sou feita ainda brilha e está intacto.” “Mas terá cicatrizes como eu. Os humanos não se contentam em marcar a si próprios, deixam sinais em tudo o que tocam. É o que agora fazem esses dois, um ao outro.” “Não imaginava que ser uma simples lata de cerveja fosse tão complexo.” “Complexidade é uma questão de ponto de vista. Se quiser aprender sobre essas criaturas, fique em silêncio e observe o que fazem. Em muitos casos, como é o nosso, observar é o mesmo que experimentar.” “Como tem tanta certeza?” “Ninguém tem certeza alguma nesse mundo. E agora fique em silêncio, observe e aprenda. Essas talvez sejam as últimas palavras que dirigimos uma à outra. Adeus.” “Adeus.” E permaneceram caladas, aguardando os amantes, que logo viriam esvaziá-las.
FERNÃO GOMES