quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

JANELAS



Não me esqueço; não pelo constrangimento de estar diante de meu próprio duplo, mas pelo pavor indescritível que senti ao entrever a tênue e perfeita camada de assombro que move todas as coisas. Ele estava em pé, do lado de fora do saguão, exposto ao vento frio e à chuva fina, olhando através da grande parede de vidro. Não parecia fixar-se em mim, embora eu pressentisse nele uma vaga consciência de minha presença evanescente. Seus olhos percorriam os espaços, observando o movimento dos vultos que por ali se deslocavam. Eu me sentia como se sangrasse por uma única ferida, a mesma por onde meu ser se consumia, obliterando-se no ritmo do fio de sangue que deslizava pelas curvas deste corpo emprestado, na mais perfeita quietude, na mais inevitável e límpida crueldade. Mas ele desapareceu, repentinamente, sem que eu pudesse ao menos antever seus movimentos e suas intenções. Depois daquela tarde, vi-o, certa noite, em minha cama, dormindo por mim, encolhido sob a coberta, como se tivesse frio. Desde então, sua presença tornou-se mais frequente, mas não menos ostensiva: às vezes, ele senta-se à mesa e almoça em meu lugar, faz musculação, dá voltas na pista do ginásio, toma café, envia emails. Nas redes sociais, não sei quem segue ou é seguido; e absolutamente desconheço a imagem com que me identifico, bem como o nome que sob ela se inscreve. Não sei o quanto de mim esse outro conhece. Talvez não seja apenas um, mas centenas como eu, centenas de egos que constituem a arquitetura de uma alma grupal. É bem possível que eu seja uma face espectral de um Eu-Superior, a concepção mal resolvida de um deus que ainda não decidiu que destino dar a esta construção em abismo. Pode ser que eu seja esse deus esquecido que só agora começa a lembrar-se de si.  

FERNÃO GOMES

sábado, 26 de novembro de 2011

ZONA FRONTEIRIÇA


Cerzido à parede, como se fora sua extensão, ele permaneceu imóvel, quieto, ouvindo apenas o incrível batimento cardíaco, enquanto pressentia vultos se aproximando perigosamente entre colunas, na perspectiva do grande pátio. “Sou o fantasma de um rei que sem cessar percorre as salas de um palácio abandonado.” No extenso palácio, ele desprendeu-se da parede, deixando nela uma delicada ondulação, um vestígio de sua tênue presença. Por entre as inumeráveis salas, transformou-se em outro nome. “Aprende, pois, tu, das cristãs angústias, ó traidor à multíplice presença dos deuses, a não teres véus nos olhos nem na alma.” Deslocou-se entre portas e ângulos. Em algum lugar, atento ao menor movimento, o comandante da operação advertiu, pelo rádio, os agentes: “Detectamos uma perturbação no tecido holográfico. A leitura no mapa de fios identifica uma presença próxima do grupamento, possivelmente na próxima sala ou onde quer que isso seja. Aproximem-se com cuidado. Ele é perigoso; ele é ilusão.” Atrás de uma porta, ele se transformou em outro nome e movimentou-se, vagarosamente, na penumbra. “Quem sabe se o supremo e ermo mistério do universo não é ele existir com inteireza tal em existir, que não tenha sentido nem razão nem mesmo uma existência, de tão única, concebível.” Súbito, sentiu um solavanco nas costas e, quando deu por si, estava no chão, imobilizado por um agente sentado sobre seu peito, comprimindo seu tórax com os joelhos: “Olá, Fingidor!” Sob a pressão do corpo do agente, ele se dissolveu na escuridão, feito evanescência. “E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso, sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir, sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito. E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.” 

FERNÃO GOMES

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

PALEOLÍTICO


Na penumbra, a luz vagamente azul do monitor revela as ondulações de seu rosto, oculto sob o capuz que foi meu um dia. Os olhos percorrem as redes sociais, os portais de notícias e os mapas da cidade, por onde ele se movimenta, incógnito. Logo, ele desliza na noite fria como um espectro, põe o estêncil no spot e preenche de tinta os espaços vazios. O discreto ruído da tinta que se esplende sobre a parede é o único sinal de vida nesse canto escuro do labirinto de Londres.  Em seguida, ele contorna as linhas de definição das imagens, e ao concluir a intervenção, ele próprio dissolve-se na escuridão como um sonho tênue. Ao amanhecer, os cidadãos de todo o mundo descobrem que os mísseis, os tanques e os ratos de todos os parlamentos  tinham desaparecido.

para Banksy

Fernão Gomes

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

PIXELS


“Você é Thom Yorke?” A cidade, submersa na tarde fria, parecia uma composição de pixels em escala de cinza. “Não sabe o que atravessei para chegar aqui”, disse a garota. “Tão perto, e tão distante.” Acabara de chover; um ar gelado percorria as ruas da cidade, transformadas em espelhos extensos em cuja superfície refletiam-se as variações metálicas do céu carbonizado. “Meu irmão está muito doente e solicita que você cante uma canção pra ele. Apenas uma canção. Você faria isso por nós?” Entreolharam-se e, sem sequer uma palavra, Thom Yorke deixou sobre o piano a canção inacabada, pegou o violão e desapareceu na tarde fria, atravessando as fronteiras que a garota atravessara para encontrá-lo. A casa estava vazia, envolvida por uma penumbra delicada e quase irreal, como um sonho que se turva ao menor movimento. Apenas um tênue rumor de vida vibrava pelos cômodos escuros. A garota girou a maçaneta e abriu vagarosamente a porta de um quarto. “Querido? Trouxe a pessoa que você pediu.” Quando Grete acendeu o abajur, Thom Yorke e Gregor Samsa ficaram frente a frente, pela primeira vez. Depois de um breve silêncio, o músico sorriu, com discreto movimento dos lábios, e sentou-se na cadeira que Grete oferecera. Gregor Samsa acomodou-se num canto do quarto e ali começou a morrer, enquanto ouvia Thom Yorke cantar a canção[1] que ele solicitara, naquela tarde fria de Praga.

FERNÃO GOMES


[1] (How to disappear completely  – Kid A, 2000).

sábado, 22 de outubro de 2011

KURTZ


Posso sentir sua presença movendo-se pelo éter, atravessando evanescências psíquicas, aproximando-se pelo ar, na escuridão da Terra. Tenho esperado por esse encontro, mas confesso que sinto um tremor em meu coração. O medo inspirou tudo o que construí; tudo o que queima profundamente dentro de mim. É deplorável senti-lo, eu sei, mas sua vibração em mim também pode ser um refinamento de sensibilidade, uma possibilidade para a depuração do ser, para uma futura expansão da consciência. Tenho esperado por esse encontro. Esses pensamentos não passam de conjecturas, de devaneios fragmentários de minha inquietude, porque falo através de uma das muitas faces do ser infinito que sou, mas minha consciência disso é meramente retórica, não se manifesta em seu esplendor fenomenológico. Sinto sua presença aproximando-se pelo ar, na noite fria. Se alguém contemplasse agora os meus olhos, sentiria como neles se expressa a calma de quem não deseja mais o festim das emoções, a serenidade de quem não busca mais as vozes alteradas das ilusões do mundo, o silêncio de quem está saciado do furor das paixões, mas também veria o brilho de quem pisou os lagares de sangue, de quem percorreu os caminhos inconfessáveis de todos os terrores, o furor diabólico de quem não consegue mais se saciar com as velhas medidas. Tenho febre, tenho fome e há muito tempo espero por esse encontro.

FERNÃO GOMES

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

POSSÍVEL SÍNTESE PARA UMA ONTOLOGIA BRASILEIRA, Nº 3





                             
                                  Obs.: Sob a perspectiva de uma imaginação teórica antropofágica.




                                 FERNÃO  GOMES

sábado, 24 de setembro de 2011

O FANTASMA NA MÁQUINA



Naquele instante, ela chorava convulsivamente, como se fora trespassada por uma paixão sem cura; fazia esforços para conter os soluços que se multiplicavam numa polifonia caótica; tentava enxugar o rosto imerso em lágrimas, por entre as quais desciam manchas do lápis que contornara os olhos. Naquele simétrico instante, quando pôde falar, vieram à tona as razões do assombro: acabara de receber um email do pai, falecido há anos. A incredulidade previsível motivou investigações, mas tudo permaneceu sem explicação, sem uma razão que justificasse a estranha mensagem. O pai anunciava visita próxima e solicitava recepção em conformidade com os rituais da tradição em que fora educado. Ela estudou as tradições, afastou-se dos amigos e, contra todas as vozes que àquela encenação se opuseram, apartou-se do mundo e preparou-se para o encontro. Encomendou uma nova mesa, dispôs nela iguarias e objetos tradicionais. Banhou-se, demoradamente, vestiu-se e, silenciosa, como convém às representações hieráticas, esperou, à mesa, a chegada do visitante. Naquele simétrico instante, em que tudo o que se move parece transpor as medidas do perceptível; em que um tremor no coração anuncia, como um arauto, o inevitável assombro; em que todas as ciências e todos os saberes silenciam seu rugido e humildemente obliteram-se diante do inominável; em que todas as paixões, que se escondem sob a ilusão de seus sabres afiados, perdem seu vigor e sua fúria; naquele instante, em que tudo o que se perde, para sempre estará perdido; naquele simétrico instante, o pai dela apareceu.

FERNÃO  GOMES

sábado, 17 de setembro de 2011

PERFORMANCE


Como se houvesse um acordo secreto entre sua sensibilidade inquieta e a transtecnologia celestial (a mesma que vaga pelos campos obscuros do esquecimento, tanto quanto se esplende dos belíssimos monitores da Apple), como se houvesse uma combinação tácita, seu olhar percorria, criteriosamente, as palavras daquela narrativa. Enquanto seus olhos deslizavam pelo texto, tentava esconder de si mesma a ansiedade que a corroía, forjando uma isenção impossível, ocultando-se sob um falso equilíbrio helênico, como fizera ao longo da vida. No entanto, seus dedos frágeis, que seguiam as linhas do texto em busca de algum sinal, de uma pista qualquer, seus dedos trêmulos eram reveladores de sua completa insegurança, de sua inquietude diante daquelas palavras que causavam tremores em seu coração, diante daquelas palavras que provocavam calafrios e faziam com que ela se sentisse tão estranhamente solitária quanto as figuras dos quadros de Edward Hopper. No entanto, recomeçou a leitura: “Eu seria capaz de apagar as cicatrizes que você deixou em mim, se isso impedisse sua partida.” Não pôde mais: fechou o livro e o afastou de si, empurrando-o sobre a mesa, tentando escondê-lo entre o vaso de flores e a bolsa aberta que há pouco ali deixara. Sentiu falta de ar, foi à sacada e ficou quieta, olhando em direção ao não, quase subjugada por uma intensa vontade de chorar. Mas resistiu e não cedeu às lágrimas. Tivesse um vislumbre do que poderia ter sido a vida, antes de entrar por uma de suas muitas portas, teria entrado?     

FERNÃO GOMES

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

PERFORMANCE


Foi brusco o movimento que o trouxe à vida. Percebeu-se sentado na cama, respiração alterada, coração acelerado, o corpo e o lençol ensopados pelo suor viscoso. Ficou assim por um instante, banhado pela luz mortiça da luminária, incomodado com a boca seca, esturricada, sob cuja aridez se escondem os fósseis do que ficou por dizer. Trouxe consigo a sensação de um deslocamento inesperado, de uma intervenção digressiva que o removia de uma narrativa inconclusa e o transfixava numa possibilidade cenográfica aparentemente desconhecida. Levantou-se, percorreu o quarto com o olhar: nenhum objeto evocava qualquer lembrança, não parecia ter o menor vínculo com aquele cenário no qual acabara de aparecer, vindo não se sabe de onde. A sensação de que representara um papel numa trama subitamente suspensa e inacabada ainda era forte, ainda vibrava em todo o seu ser. Descobriu a cozinha e procurou água. “Tenho a impressão de haver palcos em mundos diferentes; e alguma simetria perfeitamente inconcebível mobiliza-nos entre dezenas (talvez centenas) de representações com as quais é possível construir um drama cósmico. Sob essa perspectiva, os sonhos são lembranças de atuações anteriores. Mas isso é loucura; devo estar perdendo o juízo.” Fez um breve reconhecimento dos cômodos do apartamento e chegou à sacada. Sentiu o vento frio sobre o corpo ainda quente. “Se for isso mesmo, quantos sujeitos eu sou? Ou de quantos eus sou constituído?” Contemplou as luzes da cidade, enquanto fechava sobre o peito o casaco com o qual despertara, ainda umedecido de suor.

FERNÃO GOMES

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

EPITÁFIO


Hoje, que me sinto cansado de sentir o que sou,

Hoje, que pensar que me sinto cansado de sentir o que sou me cansa,

Hoje, e só hoje, e nunca mais,

Quero escrever o meu epitáfio:

Aqui jaz Fernão Gomes

Tudo o mais é mitologia.



Sou sublime, meus irmãos, assim como sois também, e não sabeis.

Não pretendo jazer sob a terra, silencioso, como jazem outros homens,

Porque jazer sob a terra, como jazem outros homens, silenciosos,

Não é destino; é símbolo; é sombra; é nada.

E, por esta razão, por esta única e essencial razão,

Quero agora corrigir o epitáfio que acabo de conceber:

Aqui não jaz Fernão Gomes

Ele deu um chiste na morte

E pegou o primeiro caminho de estrelas pro infinito.

 
FERNÃO GOMES

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

VISITA DE ESCOBAR


Era o dia das boas sensações. Escobar foi visitar-me e saber da saúde de minha mãe. Nunca me visitara até ali, nem as nossas relações estavam já tão estreitas, como vieram a ser depois; mas sabendo a razão da minha saída, três dias antes, aproveitou o domingo para ir ter comigo e perguntar se continuava o perigo ou não. Quando lhe disse que não, respirou. “Tive receio”, disse ele. “Os outros souberam?” “Parece que sim: alguns souberam.” Tio Cosme e José Dias gostaram do moço; o agregado disse-lhe que vira uma vez o pai no Rio de Janeiro. Escobar era muito polido; e, conquanto falasse mais do que veio a falar depois, ainda assim não era tanto como os rapazes da nossa idade; naquele dia achei-o um pouco mais expansivo que de costume. Tio Cosme quis que jantasse conosco. Escobar refletiu um instante e acabou dizendo que o correspondente do pai esperava por ele. Eu, lembrando-me das palavras do Gurgel, repeti-as: “Manda-se lá um preto dizer que o senhor janta aqui, e irá depois. “Tanto incômodo!” “Incômodo nenhum”, interveio Tio Cosme. Escobar aceitou, e jantou. Notei que os movimentos rápidos que tinha e dominava na aula também os dominava agora, na sala como na mesa. A hora que passou comigo foi de franca amizade. Mostrei-lhe os poucos livros que possuía. Gostou muito do retrato de meu pai; depois de alguns instantes de contemplação, virou-se e disse-me: “Vê-se que era um coração puro!” E sem que eu esperasse, ainda que tacitamente desejasse, Escobar deu dois passos em minha direção, aproximou o rosto do meu, abrochou os lábios e... Não me atrevo a dizer nada; ainda que queira traduzir aquele instante, quarenta anos depois, não me julgo capaz de fazê-lo. Sei apenas que doce foi a sensação do beijo; ele afastou-se com delicadeza e esteve a contemplar-me, quieto, vasculhando com seu olhar penetrante a inquietude que se instalara em mim. Eu fiquei encolhido a um canto, cerzido à parede, dominado completamente por uma espécie de vertigem, sem palavras. Preso, atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ele com mil palavras cálidas e mimosas... Sentia minhas entranhas devassadas pelos olhos claros e dulcíssimos do meu estimado amigo.

para Alexandre Vieira, Guilherme Sandi, Santiago Garcia

FERNÃO GOMES

sábado, 20 de agosto de 2011

CHIAROSCURO

Os espaços da estação foram tomados por uma névoa repentina. Ninguém esperava aquilo, pelo menos não daquele modo tão súbito, tão silenciosamente invasor. Monitores e relógios desapareceram quase que por completo; deles restariam vagas luminescências perdidas ao longo da grande gare, convertida num estranho campo de esquecimento. O ar gelado penetrava os vazios entre as colunas de mármore descomunais. Naquele instante, naquele perfeito e simétrico instante, ela se encostou num canto de parede, contraindo os músculos das costas ao contato imediato da superfície fria. “É preciso estar atenta em meio ao nevoeiro.” Ela se assustou com a senhora encostada à parede, ao seu lado. Ficou olhando, sem reação, tremendo de frio. “Tome; use isto.” Pôs com delicadeza um casaco sobre seus ombros, sorriu sem mostrar os dentes e se afastou, desfazendo-se na névoa. “Não perca seu trem. A hora se aproxima.” Um súbito cheiro de fritura e café construiu imagens em sua mente e despertou o ideal de família há muito adormecido. Onde estarão? Quem eram eles? Instintivamente ela olhou para cima, a fim de identificar, no jogo de luzes e sombras, as gotas de chuva, que parecia ter recomeçado. Só então entendeu que estava chorando. Enxugou os olhos na manga do casaco, fez uma prece com quaisquer palavras, para encontrar nelas o fogo ao redor do qual encolheria seu ser e desprendeu-se da parede, em direção à plataforma de embarque.   

FERNÃO GOMES

domingo, 14 de agosto de 2011

AUTOFICÇÃO

É um mundo inóspito; intenso; vigoroso. Durante todos esses anos, tenho me sentido cercado, encarcerado em mim mesmo, sozinho como um objeto esquecido no fundo de uma gaveta. Todos foram embora; não há mais ninguém por esses corredores extensos; apenas a vertigem de sua perspectiva interminável. Estou sozinho nesse pátio à meia-luz. Desculpem minha sinceridade e o tom confessional de minhas palavras, mas sinto-me melhor do que quando estava cercado por eles. Sou escritor e professor e, às vezes, me surpreendo buscando uma razão, um nexo que explique todas essas monstruosidades. Eles falavam, aflitivamente, todos ao mesmo tempo, e em voz alta, vociferavam em busca de coisas, em busca de ilusões, em busca de nada. São fantasmas perseguindo fantasmas; sombras em busca de sombras. Naturalmente, eu não tinha respostas para as perguntas que faziam. Quem as tem? Eles não sabiam que eu tinha as mãos vazias. Creio que todos os homens têm as mãos vazias. Encolho-me, por um instante, diante da onda de ar frio que avança por esses corredores, enregelando minha pele. Nesse momento, restam os últimos funcionários, apagando as luzes das últimas salas. Antes de eu me levantar desse banco, antecipo em mim mesmo o ruído dos meus passos pelo corredor e o fragor da porta se fechando. Não sei em que mundo entrarei, quando puser os pés na noite que entra.

FERNÃO GOMES

sábado, 6 de agosto de 2011

A HORA FRIA

Escolhi esconder, mas tudo em mim são os seus dez bilhões de olhos; tudo em mim são distâncias inconcebíveis – berçários de estrelas; regimes que silenciam oposições; seu implacável furor. Escolhi esconder, mas como assimilar esse jogo, se [agora sei] sou eu que me persigo, e o aparente ludismo pode se converter repentinamente em horror difuso e fronteiriço? Sinto cansaço de tudo, mas porque sou cambiante digo “sim” a todas as coisas, digo “não” ao não: necessito de tudo que é perfeitamente humano, de tudo que em mim são distâncias incomensuráveis, mas absolutamente transponíveis – misteriosas planícies siderais; constrangimentos entre cristãos e muçulmanos; o cheiro ácido e atraente do seu sexo; o frio penetrante da última hora antes do amanhecer. Também escolhi abandonar os caminhos que me conduziam à sua presença, mas a cada passo em direção à circunferência recolho despojos de sua acidez, do desenho tortuoso e úmido de suas pegadas, mas mesmo assim prossigo como quem caminha pelo cais do porto, num dia chuvoso, perseguindo os vagos sinais de uma presença espectral, uma presença que me impele continuamente para dentro de mim mesmo. Por enquanto, não espero nada, porque tenho o código de uma nova mídia. Ele está inscrito em minha alma - é a razão de  todas as minhas inquietudes e de suas futuras mensagens de texto.

FERNÃO GOMES

domingo, 31 de julho de 2011

X-FILES

Ele pôs o fone de ouvido, mas não conseguiu ouvir New York, New York. Talvez o aparelho estivesse com defeito. Chamou o operador de áudio e, num inglês sofrível, explicou o problema. O rapaz fez ajustes em alguns botões e o devolveu em perfeito estado de funcionamento. Enquanto ouvia a canção, cobriu a cabeça com o capuz, como tinham feito os demais monges que ali aguardavam o momento da gravação do comercial. Estavam sentados na posição de lótus, ouvindo nos fones a voz de Frank Sinatra. Percorreu com o olhar as câmeras e os holofotes dispostos em todos os cantos do grande terraço, de onde era possível contemplar a Ilha de Manhattan, naquele fim de tarde frio e sem nuvens. A numerosa equipe da emissora movimentava-se, de um lado a outro, dispondo os últimos microfones, realizando testes. Logo, o diretor fez um sinal, interromperam a música, ficaram todos em silêncio. Depois da contagem regressiva, entraram ao vivo na programação da emissora. Ao sinal do assistente, os monges iniciaram a vocalização do OM, em tom grave e vigoroso. Aos poucos, sua vibração começou a estremecer as instalações de transmissão, explodiram alguns holofotes, romperam-se fios elétricos e, um a um, os monges elevaram-se no ar e, diante dos olhos de milhares de pessoas, desapareceram na última luz do dia.

FERNÃO GOMES

terça-feira, 26 de julho de 2011

UMA NOVA NOVA TEORIA DO ROMANCE

Eles caminhavam em círculo, percorrendo aqueles vastos campos inóspitos, forjando na terra um caminho. A cada volta deparavam-se com as marcas que tinham deixado, admirando o lavor dos próprios pés. Eles caminhavam em círculo, percorrendo aqueles vastos campos inóspitos, forjando na terra um caminho. A cada volta deparavam-se com as marcas que tinham deixado, admirando o lavor dos próprios pés.  Eles caminhavam em círculo, percorrendo aqueles vastos campos inóspitos, forjando na terra um caminho. A cada volta deparavam-se com as marcas que tinham deixado, admirando o lavor dos próprios pés.  Eles caminhavam em círculo, percorrendo aqueles vastos campos inóspitos, forjando na terra um caminho. A cada volta deparavam-se com as marcas que tinham deixado, admirando o lavor dos próprios pés.

FERNÃO GOMES

domingo, 17 de julho de 2011

DOPPELGÄNGER

Tem os meus olhos - e um olhar de amplidões que eu jamais supusera. Vi-o uma única vez, quando saía de um zoológico, num fim de tarde frio, que deixara em meu ser impressões de irrealidade, especialmente depois que passei pela jaula da fênix e do basilisco. Havia poucas criaturas transitando pelas alamedas álgidas, quando ouvi aquela composição de violinos emergindo das trevas, em todo o seu esplendor, para fundir-se com um coro de barítonos sombrios que eu sentia incorporarem-se à paisagem desolada do pôr-do-sol, como um réquiem. Ele ficou parado, olhando fixamente, as mãos apoiadas no vidro de uma janela invisível, desejando algo íntimo e indevassável que eu carregava comigo, minha própria alma. Foi uma experiência tenebrosa: esqueci-me dos animais que acabara de rever e fugi, constrangido por uma estranha vibração que trespassava todo o meu corpo. E agora posso vê-lo, outra vez, olhando fixamente através da mesma janela. Não posso abri-la, deixarei tudo trancafiado! Ele é um eu esquecido, uma sombra ancestral, a não-linearidade em minha palavra. 

FERNÃO GOMES 

sexta-feira, 8 de julho de 2011

TAXI BOY

“Haverá um tempo para todas as coisas? Você acredita nisso? Que haverá um tempo em cujas entranhas repousa, silenciosa, a compreensão de todas as coisas? Ainda que houvesse, quantas delas, essenciais para uma vida, são assimiladas tarde demais, tão tarde que chega a ser um ultraje, tão tarde que nenhuma lágrima explica.” Levantou-se, passeou nu pelo quarto, completou o cálice, acendeu um cigarro. “Sua ingenuidade me dá calafrios, porque não é dissimulada; é expressão espontânea de preconceito mais do que seria artifício do orgulho. E isso é tudo o que você tem: o seu preconceito, razão da percepção tardia das coisas, como já disse. Enxugue suas lágrimas, elas são inúteis e não explicam nada. Quantas níobes há em você? Que desperdício! Vista-se e saia. Jamais diga ao seu namorado o que não aconteceu entre nós. Ele nunca entenderá.” Virou o último gole de vinho e ficou quieto, fumando, esperando que ela se recompusesse. “Eu poderia amar você uma vida inteira.” Ela saiu chorando, enquanto ele voltou para a cama. Ao passar pelo espelho, sua imagem não se refletiu na lâmina.

FERNÃO GOMES

quinta-feira, 30 de junho de 2011

CARDUME

A água seguia seu curso, sem sequer um murmúrio; envolvia a madeira do cais, com pequenas ondulações, cintilando aos tênues raios do último sol. Um vento gelado trazia as primeiras nuvens da frente fria. Sentados, os rapazes balançavam as pernas, enquanto observavam pequenos cardumes, nadando em sincronia como se fossem uma só entidade. “Estive pensando...” “Em quê? Na fórmula de Drake?” O outro sorriu: “Também. Mas dessa vez foram os peixes. A ideia de cardume.” E ficaram quietos, olhando um para o outro, traduzindo-se sem palavras. Semanas depois, católicos, protestantes, evangélicos, budistas, taoístas, xintoístas, umbandistas, ortodoxos, adventistas, kardecistas, mórmons, gnósticos, agnósticos, ateus, rosacruzes, maçons, reconstrucionistas, xamanistas, bruxos, druidas, ufólogos e centenas de livres pensadores encontravam-se reunidos no deserto de Atacama, alçando seus olhos aos céus. Houve entre eles um grande silêncio, seguido de um inusitado movimento de ontologias acima de suas cabeças.

FERNÃO GOMES 

sábado, 25 de junho de 2011

CLOUD INFORMATION

Um dia ele amanheceu diferente de todos os outros dias de sua inexpressiva existência, como ele próprio a caracterizou, na longa carta deixada ao tio, única pessoa com quem convivera nos últimos meses. Abriu os olhos ardentes como se retornasse de um transe que o asfixiara, como se saído de um pesadelo infernal que quase lhe subtraíra a vida, como se escapado de uma experiência opressiva e desconfortável, durante a qual corria o mais velozmente possível, a fim de atravessar as trevas de uma floresta densa e viscosa, porque perseguido por algo metálico que bafejava ruidosa e ferozmente atrás de sua nuca, arrepiando-lhe todo o corpo. Nas últimas semanas, ele vinha “sonhando com robôs”, sucessivamente. Abriu os olhos vermelhos, arquejante, como se repentinamente se lembrasse de algo muitíssimo importante e cuja importância carbonizava todas as ilusões humanas (“absolutamente todas”, foram suas palavras), cuja importância calcinava todas as verdades, todas as filosofias e sistemas de crença, subitamente convertidos em destroços, em construções patéticas e sem sentido. Redigiu, pacienciosamente, uma carta ao tio e saiu às ruas, sem direção definida. Ia cochichando aos ouvidos das pessoas que encontrava, protegendo os lábios com as mãos em forma de concha. Todas faziam expressões de espanto e imediatamente cochichavam aos ouvidos de outras, partilhando a informação recebida. Logo, milhares de pessoas cochichavam aos ouvidos umas das outras e, na medida em que o faziam, seus corpos iam se transformando em nuvens.

FERNÃO  GOMES

domingo, 19 de junho de 2011

JOHNNY BLUE

“Não!”, eu disse. “Absolutamente não, porque ‘não’ é a palavra mais bela que existe, porque um ‘não’ pode ser o intervalo entre todas as coisas, porque um ‘não’ pode conter a essência de todas as coisas.” Depois dessa intervenção, só o que me lembro, não obstante as fraturas de minha memória (porque sou um sujeito de memória tênue), são também fraturas, ruínas de narrativas: ela produziu movimentos desconexos, projeções sonoras incongruentes, imagens desinteligentes que passaram por minhas retinas numa sucessão de incoerências efêmeras. Confesso que aquela confusão de conteúdos sem sentido foi razão suficiente para eu me convencer de que havia uma multidão de mulheres diante de mim, tentando persuadir-me sobre suas razões e seus sentimentos. Era como se eu olhasse para dezenas de monitores, ao mesmo tempo, esforçando-me para compreender as imagens estranhas que se multiplicavam numa profusão de transdimensões absurdas. Depois disso, eu vi aquela criatura desaparecer diante de mim. Ela simplesmente se desmaterializou, deixou atrás de si o fragor da porta socando a parede. Eu sinceramente queria dizer a ela: “Fale comigo sobre amor. Fale comigo, ao menos uma vez, sobre amor.” Mas o fato é que eu disse “não”. E pela primeira vez no universo o “não” manifestou-se em todo o seu esplendor como o elemento gerador de uma doutrina, como o legítimo conceptor de uma filosofia. “Não”: a nova metafísica do ser, um novo capítulo na longa história das ontologias.

FERNÃO GOMES

quinta-feira, 9 de junho de 2011

A ARCA


A imagem do cálice turvara-se. Teria sido o modo como ele o percebera ou aquela ondulação seria o sinal de uma estranha intervenção em sua sensibilidade? Essa inesperada conexão trouxera movimentos de um passado em cujo campo deixara marcas que não se apagam. Mas ele não devia precipitar-se para zonas de tempo sobre as quais não tinha mais controle. Qualquer distração poderia iludir-lhe os sentidos, especialmente na presença do Abade, ex-professor de Astrobiologia, que generosamente acabara de oferecer-lhe um de seus licores exóticos, produzidos com ervas dos gigantes gasosos de Andrômeda. Súbito, o Abade estava diante dele, oferecendo o cálice de licor e sorrindo com discrição: “Interferir no curso da vida é uma ideia e tanto, especialmente quando as recombinações proteicas são anômalas.” “Presumo que sim, Mestre”, respondeu, enquanto aceitava o cálice. “Anomalias e estranhamentos são potências que instigam o espírito. Afinal, muitas narrativas vivem desses espasmos.” O Abade levantou a sobrancelha e fixou o olhar no ex-discípulo. Deslocou-se até a mesa, onde deixou o cálice, pegou uma pequena caixa escura, em cujas faces deslocavam-se ondas de um estranho veludo. Entregou-a e disse: “Tenho esperanças e temores quanto a isso. Essa arca é a espada sobre sua cabeça.” Logo o veículo espacial levantou voo, circundou as torres da catedral, vagarosamente, e deslizou em direção ao céu violeta. Ao olhar uma última vez para baixo, a imagem da catedral pareceu turvar-se, como acontecera com o cálice do Abade.

FERNÃO GOMES

domingo, 29 de maio de 2011

O CACTO

Encolhido a um canto, entre passeantes e espectros anônimos, aquele sujeito, discreto e solitário, testemunhou a cena brutal, como testemunhara tantas outras, desde sua infância distante, e inacabada. Sentindo-se premido por brutalidades e com olhar alheio, feito uma figura de Rodin, desprendeu-se do mundo e, movendo-se entre miasmas e pensamentos, constatou ser necessário resistir e adverti-los. Na quietude de sua alma, pronunciou o seguinte: “Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária: Laocoonte fora constrangido pelas serpentes, como Ugolino quedara esfaimado diante dos filhos. O cacto evocava também a aridez do nordeste: a caatinga infalível, a seca inevitável. Era enorme, mesmo para esta terra de ferocidades excepcionais. Um dia um tufão furioso abateu-o pela raiz. O cacto tombou, arrebentando os cabos elétricos, atravessado na rua, impedindo o trânsito de automóveis e de seres humanos, que por ali transitavam. Durante horas privou a cidade de iluminação, de energia e de vida. Era belo, inquieto, transgressor.”

FERNÃO GOMES

domingo, 22 de maio de 2011

NOVO FOLHETIM

A comunidade católica sentiu-se constrangida com a notícia, que reverberou por todo o orbe da santa madre igreja, causando embaraços de toda sorte: um padre brasileiro, estudante de fenomenologia, foi encontrado morto num quarto de hotel em Trastevere, em Roma. O caso ganhou as mídias do mundo – jornalistas, investigadores e autoridades do Vaticano seguiram pistas, refizeram históricos. Durante as investigações, depararam-se com personagens que estiveram com o padre brasileiro: três suspeitos, chaves para a solução do mistério - um Homem; um Padre; um Moço. Nenhum deles foi encontrado, nenhuma identidade revelada, vazios desconcertantes que levaram ao arquivamento do caso. Neste ponto, a literatura reivindica uma responsabilidade que a história é incapaz de assumir. Se o assassino fosse o Homem, o primeiro dos três suspeitos, a morte do padre ter-se-ia dado nas seguintes condições: depois de um telefonema, ambos se encontram no quarto do hotel: “Não estou aqui para discutir o valor de suas ideias. Os progressos que o Sr. tem feito junto aos sem-terra obstruíram as ações de políticos e de proprietários rurais brasileiros. Sua morte em terras estrangeiras não poderia estar mais ajustada às intenções daqueles que me enviaram.” Três tiros puseram fim aos dias do padre brasileiro. No entanto, se o assassino fosse outro Padre, o segundo entre os suspeitos, sua morte teria sido possivelmente assim: “O poder que me traz aqui está muito além daquilo que fez de nós o que somos”. “O que pode estar além do que somos?”, pergunta o Padre que morrerá. Após breve silêncio, seu executor responde: “Suas relações levaram seus passos a campos perigosíssimos.” “Como os consórcios para os quais você agora trabalha? Grupos que subvencionam pesquisas genéticas e concepção de híbridos? Não me parece ser a vontade de Deus.” “O que sabe sobre a vontade de Deus? Administrar Suas dádivas é uma tarefa suprema. E estar aqui, neste momento, faz parte desse poder.” Três tiros puseram fim aos dias do padre brasileiro. Não obstante, se o assassino fosse o Moço, o terceiro suspeito, a morte do Padre talvez fosse assim: “Suas declarações não são bem-vindas. Fomentaram atividades homofóbicas, neonazistas e ainda inspiraram ações renovadas da Klux Klan. Isso é intolerável e contraditório para quem defende comunidades rurais. Suas inconsequências terminam aqui.” Três tiros puseram fim aos dias do padre brasileiro.

FERNÃO GOMES

sexta-feira, 13 de maio de 2011

HAWORTH

Folhas de plátanos boiavam, encharcadas, nas primeiras poças que a chuva formara. Ciprestes e anjos confundiam-se entre os túmulos, na perspectiva translúcida das alamedas do campo-santo. No fim de tarde chuvoso, vultos silenciosos destacavam-se, sob guarda-chuvas, ao redor do esquife, que vagarosamente alcançara o fundo da cova. Entre os fieis que ali estavam, alguém cogitava esses pensamentos: “Quantas vezes desafiamos os fantasmas, só nós dois, ficando em pé, entre as sepulturas, invocando-os, desejando que aparecessem naquelas noites frias.” O padre concluíra já seu discurso, desenhara no ar e no próprio peito uma cruz invisível, abençoando parentes e amigos que ali protagonizavam um epílogo. “Nunca mais hei de voltar àqueles campos, meu querido, a não ser que seja ao seu lado, outra vez, como dois fantasmas vagando entre as sepulturas, sentindo o vento frio soprar em nossas faces, para sempre.” Afastou-se do grupo, feito sombra fugidia, derramando lágrimas na chuva, enquanto se dissolvia na perspectiva da alameda, como as folhas dos plátanos. Lançaram flores sobre o caixão, esparziram pétalas em saudação ao morto, possivelmente a última fala daqueles que ficam, e deixaram, silenciosos, o campo-santo. Por aquela porta, que agora se fecha, nada mais passará.

FERNÃO GOMES

sábado, 7 de maio de 2011

CAVALO DE TROIA

“Depois de desfiados todos os novelos, só o que me resta é esse instante, a perturbadora brevidade desse instante e com ele as cinzas do que foi a minha palavra.” Uma aeromoça passou e, sorridente, ofereceu serviços. Ele agradeceu, abraçou a valise, encolheu-se no acento. “A palavra em chamas.” Levantou a cabeça, percorreu com um lance de olhar o interior da aeronave. Quase todos adormeciam, quase tudo estava entregue às trevas. Alguns passageiros liam, outros conversavam mentalmente. Procurou uma posição que acomodasse o corpo e recostou a cabeça. “Como reconstituir a totalidade de uma existência? Como fazê-lo, se tudo de que disponho agora é este breve momento de suspensão? Quando penso em mim mesmo em qualquer passado, vejo outra pessoa, rememoro uma ficção vivida por outro. O que foi pertence a outro, a outros eus que não reconheço mais. Só este momento me pertence. Vou preservá-lo como preservo este segredo. Eu sou o Odisseu.” Segurou a valise junto ao corpo, como quem acomoda o filho ao colo, e ficou a tamborilar os dedos, pacienciosamente. A voz do comandante despertou os demais passageiros, avisando sobre uma turbulência próxima.

FERNÃO GOMES

segunda-feira, 2 de maio de 2011

AMÉRICA (fragmento de uma releitura)

Ela volta do quarto num vestido quase curto, discretamente florido, terminando de calçar uma sandália fina, ajeitando-a no pé com o dedo indicador. Tira da geladeira umas latinhas de cerveja e as esconde num saco plástico de supermercado. Pega o baseado e diz ao ex-patrão: “Vem. Quero aproveitar esse fim de tarde.” Saem pelo corredor e sobem silenciosamente as escadas do edifício. No último andar entram por uma porta, onde se penduram avisos e advertências sobre os perigos do sistema elétrico. Pela escada estreita alcançam o terraço ocupado por máquinas, plantas e folhagens penduradas por todos os cantos: uma floresta minúscula possivelmente conservada pelo zelador do local. Avançam por entre as folhas, como se atravessassem denso bosque, em direção a um ponto escuro e oculto. Sentam-se num canto, de onde podem ver, sem ser vistos, qualquer pessoa que por ali apareça, além da paisagem suburbana e suja que se descortina em fragmentos atrás das folhagens. A índia abre as latinhas de cerveja, eles brindam e bebem. Sempre em silêncio, ela acende o baseado, fuma duas, três vezes, passa o cigarro ao sujeito, que a imita. Ele sente amortecer todo o corpo, devolve o cigarro, aproxima-se dela e beija-lhe a boca. Ela corresponde, porque era isso que queria. Pouco depois se entregam um ao outro, morrendo de tesão, enquanto as latinhas de cerveja esperam, a um canto, trocando confidências na língua que só elas entendem: “Olhe só pra esses dois”, diz uma delas. “O que é que tem?”, responde a outra. “Mais parecem uma criatura bizarra de muitos braços e pernas, rolando e se esfregando de um lado a outro.” “E o que você tem com isso?” “Eu, propriamente, nada, mas há pouco estavam ambos entre socos e hostilidades. Não se passaram minutos já estão aos beijos, abraços e carícias.” “Isso é o sexo, amiga. É assim que se explicam muitos enredos desse mundo. Humanos são contraditórios: repudiam e desejam a um só tempo as mesmas coisas.” “Como sabe tanto sobre humanos, sendo apenas uma lata de cerveja?” “Porque sou reciclável como eles. Esvaziam-me, reciclam-me, enchem-me de cerveja, dão-me um novo lacre, que é a alma estrutural das latas de cerveja, e aqui estou. Tive muitas vidas, passando de mão em mão, de boca em boca, ouvindo as narrativas dos humanos, ao longo dos anos e das estações. Se você conhece pouco sobre eles, suponho que seja uma lata nova, tem ainda muitas vidas pela frente.” “Parece que sim. O alumínio de que sou feita ainda brilha e está intacto.” “Mas terá cicatrizes como eu. Os humanos não se contentam em marcar a si próprios, deixam sinais em tudo o que tocam. É o que agora fazem esses dois, um ao outro.” “Não imaginava que ser uma simples lata de cerveja fosse tão complexo.” “Complexidade é uma questão de ponto de vista. Se quiser aprender sobre essas criaturas, fique em silêncio e observe o que fazem. Em muitos casos, como é o nosso, observar é o mesmo que experimentar.” “Como tem tanta certeza?” “Ninguém tem certeza alguma nesse mundo. E agora fique em silêncio, observe e aprenda. Essas talvez sejam as últimas palavras que dirigimos uma à outra. Adeus.” “Adeus.” E permaneceram caladas, aguardando os amantes, que logo viriam esvaziá-las.

FERNÃO GOMES

sábado, 23 de abril de 2011

O HOMEM NO ESCURO

A onda friíssima de vento alcança seu corpo, perturba sua concentração, quase o empurra precipício abaixo. Ele sente o coração acelerar-se, dobra levemente os joelhos, procura a melhor posição para os pés, enquanto segura com firmeza a vara, em busca do equilíbrio que o manterá no cabo de aço, sabe-se lá por quanto tempo mais. Não esperava essa mudança repentina nas condições meteorológicas. Tudo fora criteriosamente calculado. No entanto, a massa de ar frio transtornara a situação: o vento entre os edifícios constrange seus movimentos, impõe outro ritmo à travessia. A meio caminho do percurso, ele parece tão convicto de seus propósitos, tão certo de suas intenções, quanto agora seu perigoso imobilismo também o revela reticente e suscetível. A tarde avança célere em direção à noite. Aqui embaixo, o trânsito está vencido; as viaturas se reproduzem, histéricas; megafones solicitam, advertem, ameaçam;  dezenas aglomeram-se pela calçada; amontoam-se nas portas dos estabelecimentos; na parada do ônibus; na entrada da estação do metrô. Com a vida interrompida, observam, inquietos, a façanha; perguntam, aflitos, sobre as razões que o impelem ao desafio, que o impulsionam ao limite das coisas. Repentinamente, uma senhora grita, em meio à multidão: “Olhem bem aquele rapaz! Ele tem a chave!” E aquele rapaz, habitante de sua infalível solidão, premido pelas ferozes oscilações da massa de ar frio, decidiu não resistir: retirou os pés do cabo de aço, como se os elevasse a degrau invisível, e percorreu a outra metade do percurso deslizando nas ondas do vento.

FERNÃO GOMES

quinta-feira, 14 de abril de 2011

D. JUAN

Aqui estou, no limite de tudo o que posso conceber de mim mesmo; no final de mim mesmo. Além dessas fronteiras, não estou certo do que encontrarei e tenho medo do deserto fantasmagórico que diante de mim se afigura, assombroso. Além de mim, não parece haver qualquer ontologia em que eu vislumbre ao menos uma sombra fugidia do que sou. No entanto, sinto-me estremecer, porque a força que me arroja, irresistivelmente, em tua direção talvez seja a mesma que também me apavora. E vislumbrar um novo caminho entre sedução e pavor, é, para mim, o triunfo do meu egoísmo, porque amar ou ser amado pode ser apenas uma ideia distante, uma imagem prestes a se dissolver ao menor movimento. Mas ironicamente é essa vaporosa fragilidade do amor que mais me atrai e me subjuga, como um algoz de cujo poder não tenho forças para escapar, mas cuja sedução estimo tanto quanto o mais negro dos meus desejos. Teu poder sobre mim é também o alento que me dá vida, a substância com que explico o horror e a dúvida de viver e, rindo secretamente, ainda posso transgredir as leis humanas do puro fingimento. Toda vez que estou diante de ti, sinto que estou diante do que mais amo: os estilhaços de mim mesmo, as cinzas do meu ser que continuamente se desfaz. Essa condição, entretanto, não me constrange, tampouco fere uma pressuposta integridade, posto que a cada fragmento que de mim se desprende, mais reconheço as inscrições de tua alma e a fúria infatigável de tua carne. Quando vou ao teu encontro, vou em direção à minha glória ou à minha morte? Presumo que em direção à minha glória, porque a morte só existe em palavras e meu presente é uma percepção sem limites. Eis então o meu legado: eu sou o caminho estreito em direção a tudo quanto mais temes, que é tudo quanto mais ardentemente desejas. Dentro de teu corpo e nos abismos insondáveis de tua alma, a cada instante eu ressuscito e te condeno.  

FERNÃO GOMES

sábado, 9 de abril de 2011

EPOPEIAS

Acumularam-se temores entre eles: ruínas de uma história de erros e inquietudes. Depois da grande rebelião, recolheram-se em seus invólucros espaciais e permaneceram distantes da Terra. As aparições tornaram-se raríssimas e mesmo nas estações mais frias, quando permitiam aproximações amistosas das tribos, deixaram de exibir seu álgido esplendor, cindidos por rancores e desilusões. Nunca mais aqueles campos foram os mesmos; arqueologia alguma será capaz de conceber os extensos labirintos sombrios cujos corredores presenciaram insólitos encontros. Resignadas em sua orfandade e impelidas por extremas aflições, as tribos pré-adâmicas irromperam nos templos e nas câmaras sacrificiais, em busca dos pomos da vida eterna, mas o Conselho Planetário há muito os apartara dessa dádiva ancestral. “É a grande noite cósmica!”, gritavam, ensandecidos, os líderes dos clãs, enquanto observavam estranhas luzes movendo-se nos céus da aurora do mundo. Muitos milênios depois, aos aedos restariam apenas fragmentos desses dramas inconcebíveis, substância e esplendor de suas epopeias. Mas em sua quietude interior, no silêncio em cujos abismos todo discurso se consome, eles conheceriam, secretamente, sua misérrima condição, e diriam consigo: “Nunca mais! Nunca mais!”

FERNÃO GOMES

domingo, 3 de abril de 2011

A VIDA POR UM FIO

A long-neck quase vazia balançava feito um pêndulo irregular, displicentemente pendurada pelo gargalo, entre os dedos médio e indicador. Tomou o último gole como se fosse o último. Uma frequência de amargor e acidez manifestou-se espontaneamente em sua boca e dali se espalhou por todo o corpo, alojou-se nos ossos, nos músculos, percorreu as extensas regiões submersas da pele, causando-lhe arrepios: foram sintomas produzidos não pelo excesso de cerveja, mas pela inexplicável sensação de premência da vida, de brevidade de suas potências. Quando é a própria vida que mais avidamente se deseja, é unicamente ela que se esvai e se perde, para sempre. Descalço, avançou pela areia grossa da praia, sentindo o cheiro forte de angústia e peixe a inundar-lhe o corpo: morrer talvez seja isso, o fim da embriaguez; o olhar construído em outro extremo. Aproximou-se do cesto de lixo e ali deixou a garrafa vazia entre as outras que ele mesmo há pouco deixara. O cheiro acre de vida em decomposição elevou-se pelo ar, causando-lhe náuseas e contrações no estômago. Despencou na cama assim como estava, humano e cheio de cicatrizes. Ao despertar, não se lembrou de sonhos ou de qualquer movimento ao longo da madrugada, mas havia em seu ser a quieta e límpida impressão de ter protagonizado périplos em extensos campos de trevas. Ainda não havia sol quando pôs os pés na areia, outra vez. Uma claridade vaga possibilitava um horizonte, mas nada por ali se movia exceto o mar ancestral: nenhum marinheiro, nenhum vapor. Sentou-se na areia e ficou quieto, contemplando um albatroz acomodado sobre o ninho. Mergulho em sua imensidão: uma vez sou a pena do albatroz; outra, seu próprio ninho, e ouço somente as ondas do misterioso mar, a engolir o cais, pouco a pouco. Mais adiante, uma gaivota riscava o horizonte, em voo esplêndido e mudo.

FERNÃO GOMES

sexta-feira, 25 de março de 2011

MEMENTO

À luz violeta do crepúsculo, o contorno escuro da abadia recortava o céu como um fantasma imóvel. Acabara de chover, era possível sentir o aroma de terra úmida que circulava pelo ar frio nas penumbras da catedral. Pela janela de uma das torres, o abade observava as pequenas luzes movendo-se devagar no horizonte distante – eram as naves da polícia espacial, que realizava os primeiros movimentos da ronda noturna. Levantou-se, foi ao pequeno oratório, acendeu algumas velas com a luz mortiça de outra e observou o tremeluzir das chamas, longamente. Em seguida, com sopro discreto e curto apagou uma delas e pensou: “Como pode a substância que move as coisas desse mundo ser tão vigorosa e também tão tênue, que se desfaz com um simples suspiro? Tenho feito essa pergunta há anos e não vislumbro uma resposta. Suspeito, porém, que entre esses atributos repouse um delicado ser-não sendo, uma poética inesperada que minha melancolia me impede de perceber e que pode ser constituída de uma surpreendente e absurda simplicidade.” Sentiu uma lágrima descer pelo rosto e, ao invés de enxugá-la, segurou-a no indicador e a contemplou por um instante: “Absurda simplicidade.” Sentiu-se estremecer, os olhos turvaram-se, outras lágrimas perderam-se pelos fios da barba. Entontecido, deitou-se no chão, encolheu braços e pernas, sentindo-se sozinho, mas inexplicavelmente amparado por uma presença que parecia brincar com seus cabelos, como ele sempre esperou que acontecesse.

para Walter M. Miller Jr.

FERNÃO GOMES

segunda-feira, 21 de março de 2011

O TERMINAL

A voz no alto-falante, anunciando o próximo embarque, pôs fim ao constrangimento que se instalara entre os dois. Com as mãos no bolso do casaco, ele encolheu os ombros, protegendo-se da onda de frio que percorria os espaços do terminal: “Não se esconda nessa falsa indiferença. Depois de tudo, parece patético.” Ela ficou quieta, sentindo as palavras ferirem, sentindo nevascas em seu ser inerme. Antes ele marcasse sua carne com a máxima ferocidade, antes ele drenasse seu sangue, dilacerasse seu corpo, levando-a ao paroxismo inconcebível. Preferiria isso, preferiria brutalidades excepcionais, mas não essas palavras que causam danos e o fazem como quem devora o inimigo aos pequenos bocados, sem nunca se satisfazer completamente. “Estamos morrendo aos poucos", ele disse. “Talvez um dia ressuscitemos.” Súbito, apagaram-se as luzes do terminal e, durante alguns decênios, tudo ficou às escuras. Ressuscitar? Não sei o que é isso. Nada sei sobre amar ou morrer. Apenas sobrevivo em minha condição. Só sei o que sinto: dor, trevas, desertos. Acenderam as luzes de emergência, o terminal ficou na penumbra e uma canção triste no alto-falante fazia fundo àquele momento.[1] Ele tentou segurar-lhe o braço, ela esquivou-se. Depois dessa recusa, afastou-se, em silêncio e vagarosamente, em direção à saída. Ela ficou parada, contemplando as cinzas que se desprendiam de seu corpo, formando um rastro de tudo o que restou. No estacionamento, sob chuva e vento frio, ele esperou o ônibus passar, para contemplá-la uma última vez, mas não identificou seu vulto. Ela ainda estava no terminal, encolhida atrás de uma coluna, agarrada à mochila, onde chorou, silenciosamente, até o amanhecer.

FERNÃO GOMES


[1] Beauty from pain – Superchic[k]

sábado, 12 de março de 2011

TECNOLOGIA INTERATIVA 2

Os números do relógio digital brilharam como um quasar intermitente e despertaram a programação sonora das guitarras indianas, como acontecia todos os dias. Ele deslizou a mão sobre a moldura flutuante do aparelho, interrompeu o som do despertador, levantou-se, com dores por todo o corpo, e foi em direção ao banheiro. No espelho, não conseguiu ver os traços do rosto, percebeu linhas indefinidas e imaginou ruínas provocadas por vapores do banho. Na cozinha, o som do rádio atenuou a frieza das simetrias metálicas: bolsa de valores e previsão do tempo. Minutos depois, estava vestido diante do painel eletrônico que programaria as atividades da casa, enquanto estivesse no trabalho. O rosto pálido de uma oriental construiu-se no monitor, iniciando a sequência de comandos a serem executados. Ele desceu pelo elevador, em direção ao estacionamento, e acomodado no veículo digitou o trajeto. O carro flutuou na pista de velocidade moderada, enquanto ele assistia no painel à síntese jornalística do dia anterior. No trabalho, ocupado com tarefas, numa das muitas baias dispostas em perspectiva, atualizou as informações do sistema. De repente, um funcionário vizinho passou por ele e disse: “Você está ótimo, hoje. Está brilhando.” Sem compreender o que acabara de ouvir, foi ao banheiro e, diante do espelho, ficou paralisado, perplexo, olhando fixamente para si mesmo. Quando aconteceu essa mudança? Por isso não fora capaz de ver o próprio rosto no espelho? Seria essa a razão das dores no corpo? Como o aceitariam, se agora ele não passava de uma narrativa biomecânica, constituída de unidades de processamento e softwares? Cedo ou tarde teria de sair dali e enfrentar as reações. Abriu a porta do banheiro, caminhou pelo corredor. Os demais funcionários cumprimentavam-no como se nada tivesse acontecido. Seriam incapazes de perceber a mudança ou ele estaria delirando, elaborando uma ilusão de si mesmo? Digitou solicitação de dispensa, reuniu as coisas e foi em direção ao estacionamento, deslocando-se, vagarosamente, junto à parede, de cabeça baixa, resignado com a própria condição e segurando o corrimão, com muito cuidado, porque naquele dia o piso estava especialmente escorregadio.

FERNÃO GOMES

domingo, 6 de março de 2011

A MÁQUINA DO MUNDO

Na noite fria, eu acabava de deixar o labirinto subterrâneo do metrô, em meio aos ruídos dopplerianos dos trens velozes a percorrer as entranhas da terra. Quando alcancei o último degrau, estava sozinho numa plataforma extensa, e de entre as nuvens carregadas, vindo de uma dobra escura ou do fundo de meus próprios medos, manifestou-se diante de mim a figura de um demônio. Indefinido em seu monstruoso esplendor, suas formas se dissolviam nas trevas, mas ao mesmo tempo delas se destacavam; ao seu redor pairava uma estranha quietude - nem som ou silêncio, nem luz ou completa escuridão. Sem que eu pudesse contemplá-lo por inteiro (porque, por mais que o fizesse, seu vulto se volatilizava), ainda era possível pressupor o olhar enegrecido que atravessava meu ser, enregelando-me diante de sua figura inexplicavelmente anterior a tudo. De repente, a criatura rompeu o silêncio e assim me disse, embora ao meu redor indício algum revelasse a menor perturbação sonora: “Deixemos a retórica aos que desejam os deleites estéticos e vamos ao que justifica esse inusitado encontro. Tudo o que você procurou, dentro e fora de seu ser cansado das repetições estéreis e da inutilidade do saber ortodoxo; as explicações que você buscou na solidão de seu ínfimo conhecimento – um sentido para o absurdo de tudo existir, um nexo para a sistematização da ciência, da filosofia e de todos os saberes, todo o poder que até agora você jamais pôde alcançar – receba em suas mãos como a máxima dádiva a que aspiram muitos de seus pares. Para obter esse conteúdo, basta assinar o contrato com seu sangue, assim como tantos outros o fizeram. No último dia de sua vida, seu corpo e sua alma serão meus.” Ditas essas palavras, estendeu-me a mão nebulosa em cuja palma havia não uma pedra luminescente, como acontece nas ficções, mas uma possibilidade. Transido de medo, e estranhamente seguro de mim mesmo, contemplei o que me oferecia. Pouco depois, a entidade se dissolveu na noite. Olhei em todas as direções, buscando algum indício de sua presença, mas ao meu redor só havia névoa e escuridão.

para Carlos Drummond de Andrade

 
FERNÃO GOMES

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

MAQUINARIA

Um rifle semiautomático é uma arma esguia, anatômica, de design atraente cujas curvas prolongam as mãos e os dedos de quem vai usá-la. Pode ser acomodado no pequeno estojo, em concavidades revestidas de veludo, especialmente desbastadas para o encaixe ajustado de suas partes. O modelo que temos diante de nós é destinado, afirmam os fabricantes, a práticas desportivas em geral, mas sabemos que podem ser úteis para outros fins. Sua coronha, adaptável ao ombro de ambidestros, é especialmente elaborada com fibra sintética, antideslizante, emoldurada por uma base ou soleira de borracha ventilada. Essa arma, que muitos consideram extraordinária, dispõe de uma mira telescópica com visão noturna e ajuste milimétrico de longo alcance, otimizado por um ponto de mira de fibra óptica vermelha. O projétil, cujo estrago justifica toda essa arquitetura que agora se descreve, é de ponta oca, capaz de penetração e danos jamais vistos. Ele é inserido na câmara, como agora fazemos, porque dispomos de uma arma de disparo único, como costuma ser: um tiro, um acerto. Contemplamos o alvo, ajustamos a mira e, no momento preciso, acionamos o gatilho: o projétil atravessa o cano flutuante, de alma raiada, passa velocíssimo pelo silenciador, girando e percorrendo o trajeto até atingir o coração de um sujeito que, neste país, jamais conceberia a possibilidade de converter-se num alvo assim como acabamos de convertê-lo. O projétil penetra no corpo e explode em fragmentos, causando dores lancinantes no deputado federal que é lançado ao chão, brutalmente, e lá permanece imóvel e sem respirar. Está morto. Acabamos de alvejá-lo. Ele é apenas o primeiro. 

FERNÃO GOMES

sábado, 19 de fevereiro de 2011

ESPECTROS

Acenderam muitas tochas no terraço solitário e frio. Nada mais havia naquelas vastidões, exceto o vento gelado soprando soberano suas inquietudes intermináveis. Reuniram-se mulheres recém-chegadas dos grandes centros, feridas em confrontos no excepcional teatro de masculinidades. Despregaram máscaras e fantasias; banharam-se, longamente. Depois, em vestes nazarenas, iniciaram os festejos: beberam, cantaram e dançaram, flexíveis, entrelaçando braços e pernas, aproximando vagamente a umidade quente dos lábios. Foi quando os espectros apareceram, conduzindo seus veículos no esplendor das trevas. As mulheres dispuseram pratos e cálices sobre a grande mesa e ali fartaram-se todos no incrível banquete dos espíritos. Um deles disse: “Ouvimos vocês chorarem. Estávamos bem próximos, mas para seus ouvidos tudo era apenas o ruído do vento.” Ao redor da grande mesa o vento diminuiu seus espasmos, quase não havia sinais de suas fantasmagorias. “Vocês não se lembram mais de todas as promessas. Vocês são os seus ancestrais.” “Nós tínhamos a Internet”, interveio uma mulher. E ficaram todos em silêncio no banquete dos espíritos. Quando elas acordaram, os espectros ainda estavam lá. No terraço solitário e frio, nada mais havia, exceto as tochas apagadas, as cadeiras vazias e o vento gelado soprando soberano suas inquietudes intermináveis.

FERNÃO GOMES

sábado, 12 de fevereiro de 2011

SINAIS

Os batimentos cardíacos aumentam, parece que vai explodir, é noite, ele corre pela rua estreita de alguma favela do grande centro, olhando muitas vezes para trás, porque vêm à sua mente, em flashes velocíssimos, imagens confusas daquilo que o faz correr com vigor extraordinário, daquilo que vem logo atrás e se aproxima perigosamente, ele não compreende, não sabe o que é, faz muito frio, o suor escorre por todo o corpo, ele sente arrepios de medo, não consegue pensar, enquanto salta um muro, desce uma escada, vira à direita, atravessa o corredor estreito, vira à esquerda e sai num descampado que conduz a outras habitações, ele está próximo do ponto aonde quer chegar, agora sobe um barranco, usa as mãos pra ganhar impulso, sente a presença de algo acima de sua cabeça, as lágrimas escorrem pelo rosto, o choro silencioso transforma-se em gritos, ele quase arrebenta a porta do barraco, agarra-se à cintura de sua mãe, esconde-se atrás dela, chorando, gritando de medo, começa a sentir formigamentos por todo o corpo, enquanto olha em direção à porta e vê a luz intensa envolvendo a habitação, o pequeno hermes cai de joelhos, dobrado em si mesmo, sentado no próprio calcanhar, arranha o peito aflitivamente como se o rasgasse, o tronco e a cabeça são projetados para trás no momento em que um largo feixe de luz expande-se de seu peito em meio aos gritos estridentes dele e de sua mãe. Curvada sobre o filho, tentando ampará-lo, ela olhou em direção à porta e, no mesmo instante, soube que eles estavam lá.

FERNÃO GOMES

sábado, 5 de fevereiro de 2011

FRONTEIRAS

Nancy lembrou-se do encontro com Hartigan. Deixou o camarim às pressas e alcançou a rua. De repente, uma sensação arrepiou-lhe o corpo: alguém a observava. Voltou-se, e viu apenas sombras. Quase corria, os sapatos chocavam-se contra a neve acumulada nos frisos da calçada. Onde estaria Hartigan? Por engano, entrou numa rua escura, interrompeu os passos e permaneceu cercada pelas trevas. Súbito, um vulto saltou sobre ela, Nancy gritou e se debateu, tentando livrar-se daquelas mãos geladas, mas o assassino agarrou seu pé, ela golpeou a criatura, arrastou-se pela escuridão e percebeu-se subitamente entre prateleiras repletas de livros. Em sua mente formavam-se indagações confusas e sem respostas. “Que lugar é este? Onde está aquele que há pouco saltou sobre mim?” Olhou ao redor e deu-se com o local em completa penumbra. Levantou-se e caminhou, vagarosamente, aguçando os sentidos, olhando entre corredores extensos e prateleiras altíssimas. No balcão, encontrou um folheto sobre a programação cultural da cidade e ficou perplexa: São Paulo. “Meu Deus! Como vim parar aqui? Estou numa biblioteca ou livraria de outro país! Mas como?" Retornou ao ponto original onde primeiro entrara naquele local, mas a criatura estava diante dela, prestes a agarrá-la. Um soco a derrubou no carpete. Entontecida, arrastou-se, de costas, apoiada nos cotovelos, enquanto o vulto se aproximava, ameaçadoramente. Nancy encostou a cabeça na prateleira, sem possibilidade de fuga. No instante em que o assassino levantou o braço para golpeá-la, ouviram-se tiros. O vulto caiu a seus pés e, na perspectiva do corredor, surgiu Hartigan, olhando para a stripper. Pouco depois, antes de deixar aquele lugar, quis saber o que acontecera. Hartigan apontou-lhe o livro de onde saíram e para onde voltariam: Sin City – Frank Miller. “Então sou apenas uma personagem?” - perguntou a si mesma. A vida parecia tão real, mas agora o que lhe restava era a constatação de que ela própria e tudo o que conhecia não passavam de ilusão!? “Como é possível?” – insistiu. “Não sei.” – respondeu Hartigan. “Talvez tudo seja uma inconcebível ficção. Uma ficção dentro de outra.” Enquanto deixavam o lugar, o luminoso do teto espalhava sua luz sobre as fronteiras de todas as ficções.

FERNÃO  GOMES