segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

O CAMINHO DE VOLTA



Ela alcançou o terraço, ofegante, o corpo encharcado pela chuva fina. Tirou os sapatos, que laceravam os pés, enquanto puxava o vestido longo, tentando livrá-lo inutilmente da água que escorria pelo chão. “Está procurando por isso?” A Senhora, sentada numa cadeira sob um baldaquino, exibia entre os dedos o brinco que ela recém-perdera. “Aproxime-se.” Sorridente, ofereceu-lhe num gesto a cadeira ao lado. Sentada confortavelmente e fumando por uma piteira, ela disse: “Quantas indagações há em seu olhar. Quisera pudesse responder a todas elas.” “E não pode?”, perguntou a Moça. “Algumas, talvez, a começar pela minha identidade. Sou apenas uma voz, uma imagem de tudo quanto seu sistema de crença é capaz de assimilar, sem fraturas emocionais, naturalmente.” Deu uma nova baforada, com certo artificialismo cinematográfico, e estendeu o brinco. “Vamos, pegue-o de volta. Não desejo outra marca de ausência além daquelas com as quais você fez inscrições em sua alma.” Lágrimas desprenderam-se dos olhos da Moça e se desfizeram no rosto ainda molhado. “Não estamos aqui para tratar das questões previsíveis desse mundo: constrangimentos biológicos sazonais, submissão histórica diante do patético discurso masculino. Essas ocorrências não passam de encenações ordinárias.” Outra baforada e disse: “Seu mundo de sonhos é um lugar solitário.” A Moça continuava chorando, em silêncio. “O que se perdeu é mais do que apenas um brinco. Mas lembre-se, querida, lembre-se daqueles campos vazios.” Uma súbita revoada de corvos cruzou o céu noturno, quase resvalando os cabelos encharcados da Moça, que repentinamente percebeu-se sozinha, sentada na mesma cadeira, exposta à chuva que se tornara intensa. Deixou o terraço como um pequeno barco que se desprende do cais e vagarosamente desaparece nas águas silenciosas.
m. q.

FERNÃO  GOMES

sábado, 24 de novembro de 2012

CINEMA




Ela surge no campo de flores, banhada pelo sol da manhã. Os cabelos dourados, caídos aos ombros, exibem ondulações de luz, enquanto o vestido azul e leve contorna seu corpo, entre os lilases do campo de alfazemas. O coração está acelerado, seus olhos se movimentam à procura de alguém. No outro extremo do campo, ele surge, resplandecente à luz do mesmo sol. Sai em direção a ela, correndo entre as flores, ao mesmo tempo em que ela sai em sua direção, de braços abertos. Encontram-se num abraço perfeito, girando e rindo de extrema alegria. Ao concluírem a cena, duas assessoras da equipe de produção foram levadas às pressas ao hospital, em meio às lagrimas e à beira de um colapso nervoso.  

FERNÃO GOMES

terça-feira, 9 de outubro de 2012

QUADRILHA



O sanfoneiro impusera o ritmo nos pés dos festeiros: o chamado da sanfona não se engana; o chamado da sanfona é o chamado da sanfona, já dizia o sanfoneiro. Mas vão entrando os casais, entre aplausos e sorrisos: rendas e vestidos estremecem; chapéus de palha flutuam entre bandeiras volpianas; há rumores no terreiro. Cavalheiros e damas se cumprimentam, lá e cá, enquanto esse menino, na barraca dos suspiros, observa o movimento, leva um cravo na lapela. Sozinho, ele se apressa e fica em pé na cadeira esquecida de um festeiro, contemplando os casais que se empolgam no momento do passeio. Eles percorrem a extensão do terreiro, exibindo suas pintas, seus bigodes pressupostos. Quando os noivos passam pelo menino, os olhares se encontram: naquele mundo, ela se casa com outro, e tem neste o coração enlaçado por quem está na ponta dos pés, olhando em silêncio os pares que atravessam o túnel e seus sobressaltos. Na toada da sanfona e nas veredas da roça, a noiva deixa acenos, deixa indícios de seus olhos - o menino sente o suspiro derreter no corpo úmido da língua. No caracol, entre padrinhos, convidados, figurantes, ela gira, rodopia e se sente entontecer: é um vislumbre dos enganos, das quimeras da fortuna. A grande roda se desfaz, cavalheiros e damas se despedem, lá e cá, enquanto esse menino, de volta à barraca dos suspiros, observa o movimento. Logo, ele receberá uma mensagem do correio elegante. E em algum lugar, outra garota sentirá um sobressalto, um tênue tremor em seu coração.

para Anderson Dino

FERNÃO GOMES

sábado, 15 de setembro de 2012

O GUARDADOR DE ESTRELAS ou LIRISMO LATINO-AMERICANO



A luz do monitor imprime os números nos olhos do astrônomo: ele observa as lentas variações da análise espectroscópica do asteroide, em sua passagem pela Terra. Faz anotações sobre o comprimento das ondas eletromagnéticas, bebe qualquer coisa fumegante por uma caneca de louça e continua observando em silêncio, cingido pela solidão de Arecibo. A solidão é um tremor pelo outro; é o que quero esquecer, mas não posso; é o que quero lembrar, mas não tenho. Na mesma noite, na Avenida Paulista, o gaitista de terno branco executa em pé o Superhomem do Gil, fazendo fundo à tristeza de um travesti cujas lágrimas desfazem a maquiagem espessa. Ele olha para o céu, em busca de um sinal, mas muito além de suas retinas há apenas um asteroide que fende o espaço, indiferentemente, exibindo sua porosidade sideral. A noite é fria. O vento, esse fantasma, percorre as esquinas da Defensa, onde amanhã estaremos entre os argentinos, contemplando as ruínas da era de ouro. Num súbito encanto, um taxista encontra o filho distante no espelho retrovisor. O mesmo vento que imperdoavelmente nos enreda e a mesma algidez que esconde nossa límpida ternura deslizam pelos terraços de Havana, onde Manuel “Puntillita” Licea materializa-se, feito aparição. Encostado a um vão de parede, ele acende o charuto, lança o fósforo na escuridão cubana, como um estranho asteroide em chamas. Sorri, com discreto movimento dos lábios, enquanto, em meio às baforadas, ouve ao fundo o Chan Chan, do Buena Vista Social Club.

para Daniel Simões

FERNÃO GOMES

terça-feira, 28 de agosto de 2012

ANONYMOUS


Encontrou a caneta entre os papéis espalhados pela mesa e, à luz da luminária, escreveu, cuidadosamente, umas palavras no bloco de notas: “Eu sempre vou me lembrar de você, especialmente quando as folhas se desprenderem, na chegada do outono.” Destacou o papel e fixou-o na borda do monitor. Vestiu a jaqueta de couro e ajeitou o cachecol no pescoço. De repente, ouviu soar a campainha. Abriu a porta e reconheceu os dois sujeitos de terno e gravata. Não esperava por essa visita que (sabia) poria todos os seus sentidos em alerta: “Temos visitantes.” Ao ouvir essas palavras, sentiu um tremor no coração. Voltou à mesa, apanhou os demais objetos e deixou a sala iluminada pela luz da luminária e do monitor, que esquecera ligado, exibindo a página do Wikileaks.

FERNÃO GOMES

domingo, 29 de julho de 2012

POÉTICA



Depois de todos esses anos, o resultado é aquilo de que não me lembro. Os vazios são justiceiros implacáveis, perseguem as criações inconclusas, o que se deixou para trás. Os vazios perseguem como uma noite que nunca amanhece. Por isso faremos uma nova escritura sobre tudo o que foi esquecido, sobre o flagelo da memória. Só não sabemos como fazer. Não sabemos como olhar e ver o que se move no vão das coisas. Saímos por aí, tecnológicos e inquietos, em busca de palavras, como peregrinos, vagando, atravessando distâncias, empilhando tijolos e papéis. Os intervalos são a nova linguagem. As fissuras, os interstícios. E pensar que, quando crianças, nós nos escondíamos no vão das coisas. Lá está a voz que se constrói e se desmorona. Se alguém a capturar, essa pode ser uma boa história. Por isso, vamos lembrar, uma vez mais: interlúdios, intervalos. Ainda não sabemos como ressuscitar subgêneros; o que foi esquecido é um novo mundo dos mortos. 



FERNÃO GOMES

sexta-feira, 29 de junho de 2012

AEDO



Está acontecendo outra vez. É como se uma forma abominável se aproximasse, impondo-me um terror indescritível - como o guardião de um portal. Toda vez que tenho de mexer com palavras sinto-me aterrorizado, como que premido por vultos que me assustam. Ultimamente, elas têm me deixado assim. Não que eu não saiba usá-las ou manipulá-las. Sei fazê-lo como jamais soubera. Mas sinto-me inquieto porque tenho tido esquecimentos e não consigo lembrar-me delas. Eu hoje sou praticamente um aedo e meu papel é de preservação da memória, um defensor de lembranças, de indícios de nossa humanidade, por mais tênues que sejam ou que tenham sido. No entanto, tenho lacunas em minha mente e não consigo lembrar-me. Se ao menos eu pudesse encontrar as palavras certas para o que quero dizer, todas as sombras desapareceriam, todo o terror que agora me assalta se desvaneceria. Se eu pudesse encontrar a palavra certa, uma palavra sequer, por mais aparentemente ínfima que fosse, mas que traduzisse qualquer indício de humanidade, que preservasse o mais insignificante traço de vida ou então que registrasse a mais feroz e imperdoável monstruosidade, uma palavra apenas que revelasse o encanto das coisas que se movem ou o prodígio das narrativas que se enredam e se destecem, para provar que pelo menos algum movimento se fez, que alguma coisa notável se passou enquanto caminhávamos pela terra. Mas não consigo lembrar-me. Sinto apenas o vapor das palavras, suas emanações fantasmagóricas, uma névoa que me trespassa e deixa em mim um vazio, deixa em mim vestígios de nada e passa.

FERNÃO GOMES

sábado, 26 de maio de 2012

ARQUIVO


Não sei ao certo como começar esses registros: a memória é um labirinto interminável com centenas de passagens e armadilhas que podem conduzir a outros mundos também intermináveis. E depois de todos aqueles eventos, que fizeram de nós atores singularmente únicos, receio que eu não esteja em condições de afirmar ou negar o que quer que seja, categoricamente. Eu todo sou um abismo de dúvidas; tudo em mim é instabilidade e inquietude. Por isso tenho hesitado diante da ideia de assumir esse papel, de ocupar o lugar de outro, ainda que momentaneamente. Tenho hesitado diante de mim mesmo, é verdade. Mas agora não vislumbro outra possibilidade a não ser a de reinventar os papéis e, se me permitem, gostaria de começar meu trabalho com um pequeno relato que, subtraídas as hipérboles naturais da emoção e preenchidas as fissuras que ela mesma inscreve na memória, pode trazer alguma luz ao que aconteceu conosco. Mas narrativas são ambíguas, como se sabe, e em muitos casos trazem mais sombras e névoas do que nossa compreensão é capaz de assimilar. Sua subjetividade pode deslocar percepções ou turvar aquilo que os olhos conseguem perceber, que é sempre uma fração do que poderíamos e nunca é o que realmente deveríamos ver. A respeito desse detalhe, um pensador afirma o seguinte:

Ele está no limiar da descoberta impressionante, já familiar aos pintores, de que não há figuras visíveis em si, de que nem o contorno da maçã nem o limite do campo e da pradaria estão aqui ou ali, estando sempre aquém ou além do ponto onde se olha, sempre entre ou atrás daquilo que se fixa, indicados, implicados, e mesmo muito imperiosamente exigidos pelas coisas, sem serem coisas eles próprios.
(MERLEAU-PONTY, p. 38).

Não sei dizer se compreendo essas palavras, apesar de muito refletir sobre seu conteúdo. Sinto que há nelas um embuste, um artifício que não consigo traduzir, que não consigo agarrar completamente. Mas vamos em frente, porque afinal eu me propus a construir um relato, uma narrativa que talvez preencha expectativas quanto ao que realmente aconteceu naqueles três dias. Esta é, aliás, a razão pela qual pus a pena na mão, como se costuma dizer, a razão que me traz aqui e agora diante de quem me lê. Mas devo confessar que nunca fiz algo semelhante: meu papel, naquela estação experimental, era outro: eu atuava como uma espécie de engenheiro de gêneros, um manipulador de realidades, um tipo muito especial de tecnólogo de mundos. Por essa simples e essencial razão não me habilitei, pelo menos não inteiramente, para essa tarefa de registro e documentação. Outro sujeito era o responsável pela construção de inventários; eu construía mundos. E agora vou dizer como foi. Mas antes vou interromper o registro, porque ainda não estou me sentindo à vontade. Ele ficará suspenso por tempo indeterminado. 

REFERÊNCIAS 
BELTING, Hans. O fim da história da arte. São Paulo: Ed. Cosac Naify, 2006.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
CARLSON, Marvin. Performance. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.
                   GOMES, Fernão. Desconstrução. São Paulo: Ed. Scortecci, 2005.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
O’DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2007. 

FERNÃO GOMES

quinta-feira, 26 de abril de 2012

EPÍLOGO



Quantos séculos em silêncio! É como se eu olhasse para um céu repentinamente nublado e visse não apenas sua óbvia superfície obscurecida pelas nuvens, mas a irrealidade sugerida por essa aparição, o sentido oculto que só se deixa entrever por quem já se libertou de algumas ilusões. Um adepto, propriamente dito. Confesso, no entanto, que, embora eu vislumbre sutilezas do espírito, ainda estou preso em algumas armadilhas, dentro de mim mesmo, e não consigo me desvencilhar delas, porque estou atado à memória emocional que insiste em trazer ao meu presente um passado que não quer ser esquecido. Um passado que ainda me subjuga por suas transversalidades éticas, mas principalmente por sua tecnologia estética, que eu considero essencial. Engajamento? Isso não passa de uma ilusão, de uma promessa de futuro galardão e arrebatamentos seráficos. Seu engajamento me irritava, S.S., especialmente por ser ingênuo, não obstante eu considerasse sua legitimidade e pureza de intenções. Nunca manifestei minha irritação, porque isso também perturbaria minha contemplação estética. E agora, o que me resta, além de deixar este depoimento, são as minhas lembranças das tardes frias, do vento soprando em nossas costas, enquanto contemplávamos os ciprestes curvando-se todos numa mesma direção, como vultos lamuriantes de um tempo perdido. Nossos momentos também se perderam. Tudo agora está envolto na névoa de um estranho passado. É irônico como tantas coisas se perdem por tão pouco. Não sei se você compreende, S. S., mas quando isso acontece, ficam só os vestígios de uma sensação irritante de desperdício, uma vontade de gritar feito um animal trespassado, ao sentir a lâmina fria romper-lhe as fibras dos músculos. Tenho vontade de dar um soco em alguém, em alguma coisa, pra descarregar essa indignação. Não é justo que certas coisas não se concretizem. Minha vontade é de chutar uma pedra, pra sentir meus dedos doerem e eu ficar com mais raiva ainda. Mas agora não tenho mais tempo. Eles estão chegando, sinto que estão próximos. Não posso vê-los de onde estou, mas sinto sua presença psíquica nesse ar quase pestilento. Por essa e por aquelas outras razões que você sabe quais, encerro minhas palavras. Este depoimento termina aqui. 

FERNÃO GOMES

sábado, 31 de março de 2012

INCAL


Naquela tarde, em que todas as substâncias constituiriam, se desejássemos, um campo afortunado de contexturas transreais capazes de forjar perturbações no espaço entre os dedos de Deus e de Adão ou entre os lábios do beijo de Rodin; naquela tarde, em que ele caminhava por uma alameda, produzindo nano-oscilações no tecido que mal encobre os acessos àqueles mundos; naquela tarde, em que ele sentia o vento soprar vestígios de irrealidade; naquela tarde, essencialmente naquela tarde, materializou-se diante dele um sujeito grandalhão, um colosso, um magneto em cujo corpo havia sinais de uma estranha liga elétrica e partículas de uma geleia mefítica dimensional, espalhadas pelo casaco escuro. “Com todos os demônios!”, explodiu o monstrengo. “Encontrei você, afinal!” O rapaz paralisou diante do titã, sentiu o coração espancar o peito muitas vezes e nada pôde fazer, exceto: “Que é isso?” “Achou que poderia se esconder nessa realidade patética, malcheirosa e repulsiva? Devolva-me o cristal ou vai conhecer minha fúria!” O peregrino das alamedas arregalou os olhos, os traços de seu rosto se distenderam, os lábios se despregaram, embasbacados, enquanto assistia à incrível transmutação do mutante que se projetava acima de sua cabeça. De repente, uma luz intensa se expandiu entre os dois, cegando a criatura, momentaneamente. Segundos depois, quando pôde enxergar, o peregrino não estava lá.
 a Moebius, a Jodorowsky

FERNÃO GOMES 

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

ALEPH


De olhos cerrados, sentindo meu ser partido ao meio, trespassado por todos os medos que pude engendrar - e o quanto por eles me senti transido; de olhos vaporosos, sem sequer uma imagem ou representação do que de mim se aproximava e me afligia; sem qualquer indício de um espírito voluntarioso ou de uma bravura constituída, mas também sem temeridades frívolas que se transmutassem em capricho, ilusão ou veleidade; sentindo-me como quem deve ser, a cada passo, o próprio caminho, transcendi as linhas que mantêm os homens em seus abrigos cotidianos (os mesmos que os eximem do assombro de ser livres), e vi o quanto estes olhos puderam abarcar. Vi as entranhas da Lua e sua estranha concavidade; vi os campos magnéticos que constituem a grande teia da Terra - e todos eles penetravam, enfeixados, meu chakra cardíaco; vi um bergantim silencioso e sua imperceptível ondulação na superfície de um oceano irreal; vi as vastidões lisissímas dos potentes discos rígidos, detentores de nossa renegada memória; vi também as misteriosas placas lógicas, ao longo das quais se forjam avenidas simétricas e seus reinos de anjos cibernéticos; também vi a dança das esferas: em sua dinâmica não há centro, e tudo em sua dinâmica é o próprio centro; vi as paisagens da Patagônia e em meu delírio adolescente apaguei, para sempre, de meus versos, as fronteiras outrora sólidas do real; vi os álamos movendo-se, inquietos, como espectros de um país perdido; também vi meu próprio sangue e nele se enredava uma nova trama, um novo estremecimento; vi passarem por mim os amores e as ferocidades históricas; vi meu corpo diante de mim, aguardando uma estranha unção; vi meu rosto e meus olhos profundos e neles estavam inscritos a Sua face – marca inextinguível capaz de conter a substância a que todos aspiram: a própria Centelha.
a Jorge Luis Borges

FERNÃO GOMES

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

BELEZA E DOR



Tudo começa com um pequeno tremor no coração. Um tremor tão tênue que, nas primeiras vezes, não é possível perceber seu sombrio esplendor. Em seguida, acontecem os assaltos repentinos, lapsos inexplicáveis: num inesperado instante, todas as coisas subitamente passam a existir, sem que haja uma mínima anterioridade, sem que haja um passado que as justifique, que lhes dê um nexo para sua súbita e estranha manifestação. Mas eu sinto que, de algum modo, em alguma espécie de realidade, esse passado existiu, ainda que agora ele seja apenas entulho, escombros de narrativas, vazio glacial. Não consigo lembrar. Eu simplesmente não consigo lembrar, apesar do esforço que, às vezes, faço. Talvez seja por isso que minha vida é mais esquecimento que representação. Quando tento resgatar minha história pressuposta, deparo-me com grandes campos nebulosos e um vento frio cortando paisagens extensas. Resta-me o esplendor do presente e suas ilusões tangíveis, sonhos que posso sentir em minhas mãos, em meus lábios, em minha pele. Enquanto isso, os vazios do que fui me constrangem, turvam a limpidez de meu ser que se desfaz, assim como os glaciares se desfazem pelas bordas, porque se esquecem. Talvez eu não ame o bastante a mim mesmo. Por isso, invento coisas para fingir que existo. Entre o visível e o imponderável, lá está o esconderijo da dor e de sua assombrosa irmã.

FERNÃO GOMES