quarta-feira, 30 de junho de 2010

NARRATIVA MÍTICA

Olá, pessoal. Continuo publicando minhas construções discursivas, assim chamadas porque são experimentos textuais que entrecruzam diversos gêneros em amplos horizontes temáticos, isto é, são textos que, através de sua arquitetura estético-temática, pretendem atuar, de algum modo, no debate histórico que caracteriza nossa dicção artística e nossa singular e estranha humanidade. O texto a seguir, intitula-se, como referido, Narrativa mítica. Obrigado pela visita e boa leitura. Abraços. FG
Houve um tempo em que os fandores riscavam os céus mesopotâmicos, cobrindo longas distâncias, de um extremo a outro do Éden. Era simplesmente lindo contemplá-los em seu voo velocíssimo e silencioso. Apenas os grifos e os dragões (não os pterodátilos!) alcançaram semelhante esplendor. Mas infelizmente os fandores foram extintos e desapareceram para sempre daqueles céus longínquos. Não muito tempo depois, e sem qualquer explicação, os noditas surgiram nos céus pós-adâmicos, controlando estranhos engenhos voadores, como que saídos, misteriosamente, das páginas extraordinárias da ficção steampunk.
FERNÃO GOMES

quarta-feira, 23 de junho de 2010

GÓTICO

O fragor das grandes portas que se fecham ruidosamente foi o último sinal sonoro da Irmandade. Durante muitos eons, nada mais poderia turvar a finíssima estampa de imortalidade que se instalara na sala de armas. Nem mesmo o súbito e acústico movimento de asas, que costuma transitar pelos campos de sonhos, seria entrevisto. Nada. Nenhuma perturbação na grande câmara. Apenas os espaços e suas intrínsecas relações geométricas forjariam os ambientes marmóreos e glaciais, outrora aquecidos pela presença da Irmandade. De agora em diante, sobre as urnas álgidas, move-se um espectro de ancestralidade, um misterioso frêmito de pétalas encarnadas, como uma paixão intensa, que faz de todos os tempos um só tempo, e de todas as ilusões uma só ilusão.
FERNÃO GOMES

sábado, 19 de junho de 2010

SARAMAGO, UMA VEZ MAIS

Olá. Gostaria de fazer outra pequena homenagem ao escritor José Saramago. Desta vez, deixo uma passagem do Desconstrução, ficção que publiquei no final de 2005. Espero que, de algum modo, ele saiba, o que nesta vida (como era meu desejo) não foi possível.
Agora ele compreende que esta realidade é determinada pelo modo como ele próprio a observa, e que os modelos que se constroem ao seu redor são reflexos de sua mente, reflexos dele mesmo. Aproxima as mãos de seu rosto e as movimenta, de um lado a outro, dobra e estica os dedos, repetidamente, observando as articulações, as falanges. Em seguida, passa os dedos, com delicadeza, sobre as pálpebras, com movimentos irregulares, como que para relaxá-las, e a fim de massagear os olhos exaustos e desenganados. Ele está em busca de uma resposta, não há dúvida, mas, para o momento, o que tem são só suas mãos abertas e o olhar perplexo de quem acaba de perder as amarras que o detinham às ilusões deste mundo. Como um barco solitário, ele se desprende do cais e desliza pelas águas de um mar que se abre à sua frente, largo, profundo, silencioso.
Até a próxima.
FERNÃO GOMES

sexta-feira, 18 de junho de 2010

LUTO

Olá, criaturas. Hoje, 18 de junho de 2010, faleceu o escritor português José Saramago. Sofremos mais uma derrota. Vão-se os filósofos, os artistas, os sonhadores; ficam os algozes da humanidade, ficam os presidentes, os hipócritas. Poderia escrever muitas linhas sobre a importância de Saramago em minha vida, mas não será necessário: estou certo do que ele representa, do que em mim é, agora e para sempre, sua humanidade e sua voz contundente. Neste momento, gostaria apenas de deixar uma pequena homenagem a esse mestre extremo: um trecho de seu livro As intermitências da morte, de 2005.



Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu.



Obrigado e até a próxima.


Fernão Gomes

quarta-feira, 16 de junho de 2010

MULTICULTURALISMO

Depois de passar centenas de anos em regime de isolamento, sem sequer ter acesso à ágora, ele perdeu referências. Com a sensação de que hibernara durante alguns eons, quis saber as horas, quis saber o dia do mês, o dia da semana. Depois perguntou sobre a previsão do tempo. O carcereiro disse que chovera no dia anterior; e fazia frio. Ele encostou a cabeça na parede e sentiu umas lágrimas quentes escorrendo; o cigarro se consumia entre seus dedos.
Fernão Gomes

domingo, 13 de junho de 2010

PÓS-ESCRITO

Pouco depois (depois que muitas portas foram fechadas), o veículo movia-se, vagarosamente, naquela vastidão de trevas e luz. Quase ninguém percebeu o evento epifânico que lançara pela imensidão do cosmo a boa nova. Apenas ela, tão acostumada à solidão em seu Explorer_9, tão familiarmente íntima do pó de estrelas que sempre se fixou na sola de suas botas, apenas ela contemplou, em sua singularidade, o espectro dionisíaco, um tremor pequeno em seu coração.
para Fabiula Neubern

FERNÃO GOMES

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Olá, pessoal. Vou retomar as postagens de minhas construções discursivas, textos escritos num velho computador. Se apreciarem, maravilha. Boa leitura.




PORTAL



Ela estava sentada displicentemente no ponto extremo de uma coluna, a perna roçando o capitel dórico, logo abaixo. Lia as primeiras linhas do Castelo de Otranto, enquanto o vento quase imperceptível do entardecer movia, de leve, seus cabelos longos. De repente, sem que ela percebesse, a criatura pousou na coluna ao lado e permaneceu imóvel, contemplando a nudez de seu pé, que balançava como um pêndulo levíssimo.



FERNÃO GOMES