sábado, 15 de setembro de 2012

O GUARDADOR DE ESTRELAS ou LIRISMO LATINO-AMERICANO



A luz do monitor imprime os números nos olhos do astrônomo: ele observa as lentas variações da análise espectroscópica do asteroide, em sua passagem pela Terra. Faz anotações sobre o comprimento das ondas eletromagnéticas, bebe qualquer coisa fumegante por uma caneca de louça e continua observando em silêncio, cingido pela solidão de Arecibo. A solidão é um tremor pelo outro; é o que quero esquecer, mas não posso; é o que quero lembrar, mas não tenho. Na mesma noite, na Avenida Paulista, o gaitista de terno branco executa em pé o Superhomem do Gil, fazendo fundo à tristeza de um travesti cujas lágrimas desfazem a maquiagem espessa. Ele olha para o céu, em busca de um sinal, mas muito além de suas retinas há apenas um asteroide que fende o espaço, indiferentemente, exibindo sua porosidade sideral. A noite é fria. O vento, esse fantasma, percorre as esquinas da Defensa, onde amanhã estaremos entre os argentinos, contemplando as ruínas da era de ouro. Num súbito encanto, um taxista encontra o filho distante no espelho retrovisor. O mesmo vento que imperdoavelmente nos enreda e a mesma algidez que esconde nossa límpida ternura deslizam pelos terraços de Havana, onde Manuel “Puntillita” Licea materializa-se, feito aparição. Encostado a um vão de parede, ele acende o charuto, lança o fósforo na escuridão cubana, como um estranho asteroide em chamas. Sorri, com discreto movimento dos lábios, enquanto, em meio às baforadas, ouve ao fundo o Chan Chan, do Buena Vista Social Club.

para Daniel Simões

FERNÃO GOMES