sexta-feira, 29 de junho de 2012

AEDO



Está acontecendo outra vez. É como se uma forma abominável se aproximasse, impondo-me um terror indescritível - como o guardião de um portal. Toda vez que tenho de mexer com palavras sinto-me aterrorizado, como que premido por vultos que me assustam. Ultimamente, elas têm me deixado assim. Não que eu não saiba usá-las ou manipulá-las. Sei fazê-lo como jamais soubera. Mas sinto-me inquieto porque tenho tido esquecimentos e não consigo lembrar-me delas. Eu hoje sou praticamente um aedo e meu papel é de preservação da memória, um defensor de lembranças, de indícios de nossa humanidade, por mais tênues que sejam ou que tenham sido. No entanto, tenho lacunas em minha mente e não consigo lembrar-me. Se ao menos eu pudesse encontrar as palavras certas para o que quero dizer, todas as sombras desapareceriam, todo o terror que agora me assalta se desvaneceria. Se eu pudesse encontrar a palavra certa, uma palavra sequer, por mais aparentemente ínfima que fosse, mas que traduzisse qualquer indício de humanidade, que preservasse o mais insignificante traço de vida ou então que registrasse a mais feroz e imperdoável monstruosidade, uma palavra apenas que revelasse o encanto das coisas que se movem ou o prodígio das narrativas que se enredam e se destecem, para provar que pelo menos algum movimento se fez, que alguma coisa notável se passou enquanto caminhávamos pela terra. Mas não consigo lembrar-me. Sinto apenas o vapor das palavras, suas emanações fantasmagóricas, uma névoa que me trespassa e deixa em mim um vazio, deixa em mim vestígios de nada e passa.

FERNÃO GOMES

Nenhum comentário:

Postar um comentário