segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

O CAMINHO DE VOLTA



Ela alcançou o terraço, ofegante, o corpo encharcado pela chuva fina. Tirou os sapatos, que laceravam os pés, enquanto puxava o vestido longo, tentando livrá-lo inutilmente da água que escorria pelo chão. “Está procurando por isso?” A Senhora, sentada numa cadeira sob um baldaquino, exibia entre os dedos o brinco que ela recém-perdera. “Aproxime-se.” Sorridente, ofereceu-lhe num gesto a cadeira ao lado. Sentada confortavelmente e fumando por uma piteira, ela disse: “Quantas indagações há em seu olhar. Quisera pudesse responder a todas elas.” “E não pode?”, perguntou a Moça. “Algumas, talvez, a começar pela minha identidade. Sou apenas uma voz, uma imagem de tudo quanto seu sistema de crença é capaz de assimilar, sem fraturas emocionais, naturalmente.” Deu uma nova baforada, com certo artificialismo cinematográfico, e estendeu o brinco. “Vamos, pegue-o de volta. Não desejo outra marca de ausência além daquelas com as quais você fez inscrições em sua alma.” Lágrimas desprenderam-se dos olhos da Moça e se desfizeram no rosto ainda molhado. “Não estamos aqui para tratar das questões previsíveis desse mundo: constrangimentos biológicos sazonais, submissão histórica diante do patético discurso masculino. Essas ocorrências não passam de encenações ordinárias.” Outra baforada e disse: “Seu mundo de sonhos é um lugar solitário.” A Moça continuava chorando, em silêncio. “O que se perdeu é mais do que apenas um brinco. Mas lembre-se, querida, lembre-se daqueles campos vazios.” Uma súbita revoada de corvos cruzou o céu noturno, quase resvalando os cabelos encharcados da Moça, que repentinamente percebeu-se sozinha, sentada na mesma cadeira, exposta à chuva que se tornara intensa. Deixou o terraço como um pequeno barco que se desprende do cais e vagarosamente desaparece nas águas silenciosas.
m. q.

FERNÃO  GOMES

Um comentário:

  1. Li, reli, reli mais uma vez... A cena da moça me encantou. Quem será a moça? Hmmm... Mistério. Também escrevo sempre que posso para uma musa inspiradora. Muito bom o texto. Parabéns!

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