Senhora,
foi preciso que eu sangrasse vagarosamente, feito um arcanjo quântico, em busca
de crepúsculos escarlates; foi preciso que eu atravessasse os lagos de sangue e
sentisse o fel em meus dentes, como quem digere o metal amargo e translúcido;
foi preciso que eu ficasse apenas com a memória do vento frio, além da álgida e
pungente sensação de ter nada em minhas mãos; foi preciso que seu falso punhal
me trespassasse para que eu compreendesse que seus esconderijos são invenções
de temor e vazio. Suas máscaras são ilusões que se corrompem tenuemente como os
delicados círios, diante do fogo implacável. Eu sou esse fogo, a chama diante
da qual tudo se revela. Suas criações, tênue Senhora, serão nada mais que
vultos desaparecendo, tristemente, como hologramas efêmeros, nas avenidas
assombrosas de um solitário disco rígido.
FERNÃO GOMES
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