sábado, 17 de julho de 2010

NGC 224

O digital flutuante, suspenso na esquina, marca dezoito horas. Sentado a um canto do café, ele contempla, através do vidro, os números azuis do relógio holográfico que se projetam na luz laranja do crepúsculo. O monitor clínico, fixado a um canto da parede, sinaliza que a atmosfera psicoanímica está um tanto agitada, nesse momento: alcança 7.8 na escala neuroespectral e quase permite a corporificação de fragmentos ectoplásmicos, miasmas emocionais do que restou do dia. Mas a essa efervescência proto-ontológica subjaz um vulto silencioso de amargura que põe neste mundo uma exaustão de existir nunca antes vista. Súbito, um veículo da Polícia Autônoma Setorial estaciona a poucos metros do chão e uma voz quase metálica solicita os números de registro do condutor de um Spider_G3 esférico, cuja blindagem orgânica exibe variações de cinza, verde e vermelho, tonalidades características dos modelos produzidos nos românticos anos 2160. Concluída a verificação dos dados, o veículo eleva-se no ar e, aos poucos, desaparece no céu laranja, refletindo-se na íris deste herói anônimo e quase invisível, que observa. Ele põe sobre a mesa cinco níqueis, levanta-se e, depois de lançar um olhar discreto ao Spider_G3, ainda estacionado na esquina, deixa o Café Andrômeda e afasta-se, vagarosamente, pela calçada estelar, contemplando uma possível paisagem de galáxias no horizonte distante.

FERNÃO GOMES

Um comentário:

  1. Ainda que num futuro onde nossos estados de alma correm o risco de se materializar (ou seríamos nós a correr riscos?!, o homem está só.
    Belo conto!

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