sábado, 4 de setembro de 2010

AGNÈS SOREL

Ela entra no quarto para despir-se, mas sua nudez não se revelará assim, de um instante a outro, como parco objeto que se abre repentinamente sem as essenciais oscilações da expectativa ou como gesto vazio de quem já se esqueceu do esplendor do rito. Não; absolutamente não. Ela descobre o seio com o rigor calculado de quem transita em zonas fronteiriças – nem a transcendência da mãe, nem a obscenidade da amante. Ao livrar-se do vestido e abandoná-lo no chão, deixa transparecer, para si mesma, um vago vestígio de pudor, mas é possível que pudor, neste caso, seja apenas um artifício. A verdade é que a essa altura a máxima distância que nos separa de suas entranhas é a última peça. Vamos então tirá-la, mas não faremos isso pelo texto, não seria amigo suprimir a possibilidade de o leitor elaborar ele próprio esse deleite. Deixamos aqui uma lacuna, um interstício, e muitos mistérios. Ela agora está deitada de bruços, completamente nua, balançando as pernas entreabertas, vagamente entretida com anotações de um diário – eu te odeio, eu te amo; eu te odeio, eu te amo; eu te odeio, eu te amo. Logo, o rei entrará por aquela porta.

FERNÃO  GOMES

2 comentários:

  1. Caro: de todas as cruzadas, temos a certeza apenas daquela que se faz abertamente, no melhor estlo matar ou matar. Da vez última que estive em cruzada, que quis mostrar meus prós ao meu outro, meu povo, meu rei - este sempre altivo - se pôs a calar-se e a preferir o diálogo. Perdi um reino por não querer lutar abertamente. Entretanto, não há céus que cubram aquilo que ganhei e que levo, agora, comigo. Grande abraço. Sempre por aqui.

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  2. Há quem fale da superioridade do cinema em relação à literatura em nossa era das imagens, mas creio que uma imagem, por mais poética que fosse, jamais realizaria a poesia convocada pela imaginação que suas palavras provocam.

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