quinta-feira, 30 de setembro de 2010

HERÓI

Eu queria cometer um crime e ser condenado por ele. Mas não apenas um crime sórdido, hediondo e sangrento, como costumam ser os crimes dos assassinos em série, dotados de mentes artisticamente complexas e corações indevassáveis, que engendram e executam nas trevas seus ódios ordinários e suas vinganças excepcionais. Não; esses crimes são desafortunadamente pontuais e convergentes. Eu queria um crime com outras proporções, um crime intenso o bastante para calcinar as inocências; contundente o bastante para devastar as ferocidades; um crime superlativamente extremo; um crime-espetáculo, representação, que expusesse a mais obscena e insuportável humanidade; um crime que trouxesse aos olhos aquilo de que mais as pessoas se escondem; que fosse cometido não às escondidas, mas à luz do dia, à luz mais ostensiva do dia, para que todos pudessem de algum modo protagonizá-lo comigo. Certamente, minha condenação seria assim: “O prestidigitador é culpado e será expulso da polis. Ele nos iludiu, ele mentiu para nós.” Em seguida, eu seria encerrado numa cela incrivelmente hermética, nas profundezas da terra, até o final dos tempos. Enquanto isso, os juízes voltariam a contemplar as oscilações das próprias sombras, vagamente projetadas na parede da caverna.



 
FERNÃO  GOMES

5 comentários:

  1. Demais!!! Há muita coisa sobre o que comentar... desde às referências a Platão, passando pelo uso das fórmulas clássicas de escrita de narrativa, até a deliciosa precisão impressionista do uso de substantivos e adjetivos... a minha impressão é que esse texto renderia um romance! O que acha?

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  2. Acho que se ele é bom como conto, não rende um romance. A não ser aquele (romance) que o leitor construir dentro de si.
    Ps. É um conto que se impõe, e isso basta!

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  3. Muito Bom!!! Eu "queria" cometer um crime...calcinar inocências... Ah, me vi dentro desta cena como algum assistente deste crime. PS: Estou te divulgando no Twitter...

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  4. Seus pensamentos me obrigam a ser grande, professor. E esta é uma das imposições mais fantásticas que minha vida experimenta em seus 21 anos de burilamento.

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  5. Isso é a natureza humana André, procuramos sempre nos adequar ao meio de convivência que temos e podemos ter certeza, não poderiamos encontrar mais rico meio que se não a companhia de pessoas como esta.
    Mas também é a natureza humana, em sua mais negra existência, que tentamos esconder. Já tentamos todo tipo de armadilha e prisão porém não há vez que não escape. Ela é parte de nós, e sempre encontra tempo para se manifestar, sair de sua prisão debaixo da terra, para encontrar em nós, um meio de expressão.

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