domingo, 7 de novembro de 2010

LUGAR COMUM

Na lan house as amigas estavam na mesma baia e partilhavam conteúdos. “É esse aqui”, disse uma delas, tocando levemente o monitor, que produziu ondulações, do centro para a circunferência. Entreolharam-se, incrédulas, olhos admirados. A garota tocou o monitor outras vezes e ali ficaram ambas, sob o encantamento das ondas, até perceberem que a tela era suscetível a ponto de penetrá-la. Uma delas forçou o dedo e, subitamente, quase toda a mão desapareceu dentro do monitor. “Fulana, que é isso?”, disse a amiga, enquanto a outra permanecia em silêncio, girando a mão submersa. Tentou puxá-la, mas a mão estava presa e, quanto mais força fazia, algo a sequestrava para dentro da tela. Respirou fundo e deu um impulso, mas, ao invés de sair, todo o seu braço entrou pelo monitor, que o absorveu até os ombros. Ela tentava voltar, apoiava-se com os pés no chão e na quina da mesa, enquanto com a outra mão segurava nas bordas escuras da tela. “Que é isso, Fulana? Para com essa brincadeira. Não tem graça nenhuma.” Mas a Fulana mal conseguia ouvir a amiga, lutava para não ser engolida, expressando nos olhos o mesmo horror da Medusa, de Caravaggio. “Por favor, alguém pode ajudar?”, pedia a amiga, enquanto tentava trazer a garota de volta, puxando-a pela cintura. Os usuários olhavam, mas voltavam aos monitores, em silêncio. Um deles levantou-se e tentou segurar a garota, mas não teve forças: ela foi puxada até a cintura e, num golpe fatal, todo o corpo desapareceu sob a tela do monitor. Houve um momento de silêncio interrompido apenas pela chegada do gerente: “Com licença. Não se preocupe. O que acabou de acontecer não é comum, mas é plausível.” O rapaz retornou à sua baia. A amiga sentou-se e permaneceu imóvel, quieta. Levou algum tempo para assimilar o fenômeno, mas depois desse intervalo disse: “Preciso ver meus emails.” O gerente respondeu: “Fique tranquila. Por conta desse incidente, a primeira hora será grátis, com direito a um refrigerante. Vou reiniciar o computador. Deseja mais alguma coisa?” “Não, obrigada.” Observou o computador abrir a área de trabalho e, ainda em silêncio, sentou-se com o refrigerante nas mãos e atualizou sua correspondência.



FERNÃO GOMES

4 comentários:

  1. Em tempos em que tem-se que consolidar a vida real com a virtual, estar-se preso à virtualidade realmente não assusta mais ninguém.
    Não sabia que também sua literatura tendia à ficção científica!
    Fora isso, ctrldeei seu blog e voltarei aqui todo dia sim, outro também, como é de praxe com os blogs que leio!
    Um grande abraço, Jr!

    Gu.i Sandi

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  2. isso m lembra "desaconstrução", no momento da fuga do assaltante...

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  3. The Sims feelings. Adorei o termo baia. Matrix. Platão. Solidão...

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  4. "...expressando nos olhos o mesmo horror da Medusa, de Caravaggio."

    Se a história acontecesse em um restaurante, poderia ser a Medusa de Vik Muniz ... ahahahha

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