segunda-feira, 26 de julho de 2010

ASCENSÃO

No metrô, seus olhares se encontram. Pela escada rolante, elas alcançam a luz da avenida.

FERNÃO GOMES

domingo, 25 de julho de 2010

O VIOLINISTA NO TELHADO

O plano era formidável. Simplesmente formidável. Bastava que funcionasse e tudo terminaria bem. Visto isto, apoiou os cotovelos no parapeito da janela, entrelaçou os dedos, transformando as mãos numa perfeita simetria (onde se produzem as culturas desse mundo), e permaneceu em silêncio, sem pensar em nada, contemplando um fio de fumaça, finíssimo, que se elevava de algum ponto próximo dali, e tecia, pacienciosamente, uma nuvem.
FERNÃO GOMES

sábado, 17 de julho de 2010

NGC 224

O digital flutuante, suspenso na esquina, marca dezoito horas. Sentado a um canto do café, ele contempla, através do vidro, os números azuis do relógio holográfico que se projetam na luz laranja do crepúsculo. O monitor clínico, fixado a um canto da parede, sinaliza que a atmosfera psicoanímica está um tanto agitada, nesse momento: alcança 7.8 na escala neuroespectral e quase permite a corporificação de fragmentos ectoplásmicos, miasmas emocionais do que restou do dia. Mas a essa efervescência proto-ontológica subjaz um vulto silencioso de amargura que põe neste mundo uma exaustão de existir nunca antes vista. Súbito, um veículo da Polícia Autônoma Setorial estaciona a poucos metros do chão e uma voz quase metálica solicita os números de registro do condutor de um Spider_G3 esférico, cuja blindagem orgânica exibe variações de cinza, verde e vermelho, tonalidades características dos modelos produzidos nos românticos anos 2160. Concluída a verificação dos dados, o veículo eleva-se no ar e, aos poucos, desaparece no céu laranja, refletindo-se na íris deste herói anônimo e quase invisível, que observa. Ele põe sobre a mesa cinco níqueis, levanta-se e, depois de lançar um olhar discreto ao Spider_G3, ainda estacionado na esquina, deixa o Café Andrômeda e afasta-se, vagarosamente, pela calçada estelar, contemplando uma possível paisagem de galáxias no horizonte distante.

FERNÃO GOMES

sábado, 10 de julho de 2010

LUA NEGRA

...porque a irracionalidade que me subjuga e me caracteriza não se satisfaz com as imaterialidades do seu romantismo sentimental e novelesco, e pra eu não me sentir incompleto e fraturado, assim como quem se sente incompleto e fraturado, eu necessito mais do que só as suas paixões metafísicas e inconfessáveis, eu necessito da fisicalidade de suas entranhas, de suas vísceras banhadas em sangue, submersas nesse plasma hipnótico e repugnante que assinala minha condição de animal danado em busca de qualquer nexo ou substância que me permita neutralizar ou aplacar essa fome, essa sede, esse desejo incontrolável de me transformar, de me transmutar, de me converter no único e absoluto sentido para a sua percepção já turvada pela irracionalidade que me subjuga e me caracteriza, já contaminada pela inevitabilidade da physis que arroja o seu corpo em direção ao meu, que conspira pela poesia que pode haver no entrelaçamento de nossos dedos e no encontro de nossos olhares, em qualquer tempo, em qualquer realidade onde essa possibilidade se converta realmente numa perturbação, num sopro sobre a superfície do lago e em cujo espelho eu vislumbre pelo menos o seu rosto, pelo menos o seu olhar, que é como começam as mitologias, mas se também essa ilusão me for subtraída, então que o mesmo absurdo que concebe estrelas e luz transmute o meu abandono num discreto perfume de suor e sangue, o primeiro sinal por conta do qual tudo começa.
FERNÃO GOMES

quarta-feira, 7 de julho de 2010

EON


As luminárias foram dispostas por toda a extensão da plataforma extrema, cujos limites revelavam os precipícios vertiginosos daqueles confins. Quando o crepúsculo manifestou-se (de fato, havia uma certa tonalidade no céu), as monjas apareceram, vindas das portas escuras do convento, silenciosas, enfileiradas, e, pouco a pouco, ocuparam os espaços daquele vasto terraço entranhado nos cumes altíssimos. Dispuseram-se por entre as lanternas que flutuavam sobre suas cabeças e permaneceram imóveis até que anoitecesse por completo. Só então se descobriram, voltaram os olhos para o céu e contemplaram o espetáculo: uma a uma, as estrelas, na imensidão de trevas, começaram a extinguir-se.
para Arthur C. Clarke
FERNÃO GOMES

sábado, 3 de julho de 2010

SCHEIN

Muito possivelmente eu tenha de percorrer outros caminhos para compreender por que, nas profundezas desse mesmo silêncio com que me constranges, forjam-se a repentina aridez dos teus lábios e a inquietude dos teus olhares absolutamente inconsequentes, que me seguem e me instigam, sob os cachos de tua falsa cabeleira vermelha.
FERNÃO GOMES