sábado, 12 de março de 2011

TECNOLOGIA INTERATIVA 2

Os números do relógio digital brilharam como um quasar intermitente e despertaram a programação sonora das guitarras indianas, como acontecia todos os dias. Ele deslizou a mão sobre a moldura flutuante do aparelho, interrompeu o som do despertador, levantou-se, com dores por todo o corpo, e foi em direção ao banheiro. No espelho, não conseguiu ver os traços do rosto, percebeu linhas indefinidas e imaginou ruínas provocadas por vapores do banho. Na cozinha, o som do rádio atenuou a frieza das simetrias metálicas: bolsa de valores e previsão do tempo. Minutos depois, estava vestido diante do painel eletrônico que programaria as atividades da casa, enquanto estivesse no trabalho. O rosto pálido de uma oriental construiu-se no monitor, iniciando a sequência de comandos a serem executados. Ele desceu pelo elevador, em direção ao estacionamento, e acomodado no veículo digitou o trajeto. O carro flutuou na pista de velocidade moderada, enquanto ele assistia no painel à síntese jornalística do dia anterior. No trabalho, ocupado com tarefas, numa das muitas baias dispostas em perspectiva, atualizou as informações do sistema. De repente, um funcionário vizinho passou por ele e disse: “Você está ótimo, hoje. Está brilhando.” Sem compreender o que acabara de ouvir, foi ao banheiro e, diante do espelho, ficou paralisado, perplexo, olhando fixamente para si mesmo. Quando aconteceu essa mudança? Por isso não fora capaz de ver o próprio rosto no espelho? Seria essa a razão das dores no corpo? Como o aceitariam, se agora ele não passava de uma narrativa biomecânica, constituída de unidades de processamento e softwares? Cedo ou tarde teria de sair dali e enfrentar as reações. Abriu a porta do banheiro, caminhou pelo corredor. Os demais funcionários cumprimentavam-no como se nada tivesse acontecido. Seriam incapazes de perceber a mudança ou ele estaria delirando, elaborando uma ilusão de si mesmo? Digitou solicitação de dispensa, reuniu as coisas e foi em direção ao estacionamento, deslocando-se, vagarosamente, junto à parede, de cabeça baixa, resignado com a própria condição e segurando o corrimão, com muito cuidado, porque naquele dia o piso estava especialmente escorregadio.

FERNÃO GOMES

3 comentários:

  1. Ei, Jr.
    Duas ideias me retornaram: a primeira, a d' O Homem Bicentenário, do Asimov (não li; só assisti ao filme), às avessas. E depois, em relação ao ambiente de trabalho fatídico e hostil, à noção final que permeia o conto "O Ex-Mágico da Taberna Minhota", do Rubião.
    Mas a influência da tecnologia nos seres atuais é gritante: lembro-me, ainda que turvamente, de que antes da internet existir não havia uma reclamação constante de falta de tempo. Não deveria ser o oposto?, ou seja, com a tecnologia abreviarmos o tempo dos eventos a serem realizados e darmos maior valor ao que realmente importa na existência (famílias, amigos, projetos pessoais)? Não sei, eu mesmo percebo: antes da internet eu lia muito mais que hoje.
    Não me assustarei se um dia notar meu corpo unido aos móveis de casa por filamentos de fibra ótica, cabos de energia, etc.
    Até mais ver (por esses meios virtuais, num primeiro momento).
    ;)

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  2. As pessoas percebem, sim, a mudança, mas quando o conjunto de pessoas muda por igual, temos novos parâmetros sendo estabelecidos.
    Está acontecendo agora, por todas as partes, é só olhar ao seu redor, e quem sabe talvez, no espelho retângular de sua sala.
    Você pode se impressionar com a imagem. Ou não.

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  3. Como vai professor? O puro acaso me fez encontrar o seu blog. Ao lê-lo, os textos, assinados por Fernão Gomes, não tive dúvidas de que era você. Abraços! D. Zilio.

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