domingo, 6 de março de 2011

A MÁQUINA DO MUNDO

Na noite fria, eu acabava de deixar o labirinto subterrâneo do metrô, em meio aos ruídos dopplerianos dos trens velozes a percorrer as entranhas da terra. Quando alcancei o último degrau, estava sozinho numa plataforma extensa, e de entre as nuvens carregadas, vindo de uma dobra escura ou do fundo de meus próprios medos, manifestou-se diante de mim a figura de um demônio. Indefinido em seu monstruoso esplendor, suas formas se dissolviam nas trevas, mas ao mesmo tempo delas se destacavam; ao seu redor pairava uma estranha quietude - nem som ou silêncio, nem luz ou completa escuridão. Sem que eu pudesse contemplá-lo por inteiro (porque, por mais que o fizesse, seu vulto se volatilizava), ainda era possível pressupor o olhar enegrecido que atravessava meu ser, enregelando-me diante de sua figura inexplicavelmente anterior a tudo. De repente, a criatura rompeu o silêncio e assim me disse, embora ao meu redor indício algum revelasse a menor perturbação sonora: “Deixemos a retórica aos que desejam os deleites estéticos e vamos ao que justifica esse inusitado encontro. Tudo o que você procurou, dentro e fora de seu ser cansado das repetições estéreis e da inutilidade do saber ortodoxo; as explicações que você buscou na solidão de seu ínfimo conhecimento – um sentido para o absurdo de tudo existir, um nexo para a sistematização da ciência, da filosofia e de todos os saberes, todo o poder que até agora você jamais pôde alcançar – receba em suas mãos como a máxima dádiva a que aspiram muitos de seus pares. Para obter esse conteúdo, basta assinar o contrato com seu sangue, assim como tantos outros o fizeram. No último dia de sua vida, seu corpo e sua alma serão meus.” Ditas essas palavras, estendeu-me a mão nebulosa em cuja palma havia não uma pedra luminescente, como acontece nas ficções, mas uma possibilidade. Transido de medo, e estranhamente seguro de mim mesmo, contemplei o que me oferecia. Pouco depois, a entidade se dissolveu na noite. Olhei em todas as direções, buscando algum indício de sua presença, mas ao meu redor só havia névoa e escuridão.

para Carlos Drummond de Andrade

 
FERNÃO GOMES

2 comentários:

  1. Algumas de suas ficções propõem o imponderável. No entanto, essa situação absurada acaba por se configurar como um questionamento viável a respeito da existência humana. Estaríamos preparados para um encontro apocalíptico ocmo esse?

    Em alguns momentos decisivos da humanidade, o que fizemos em momentos metaforicamente comparáveis a esse?

    Achei curiosa também a dedicatória! Belo texto!

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  2. Eu, ao contrário do Alê, já acho que não há aí exatamente uma situação absurda. Metaforicamente caminhamos sempre para a assinatura de contratos, sobre os quais nos debruçamos tacitamente, seja na mais íntima privacidade das horas, seja na maneira como encaramos o mundo.
    Creio que estamos sempre nos conduzindo para tais diálogos com demônios eventuais, isso quando, aos olhos de outras pessoas, não somos nós os demônios.
    Fora isso, de imediato me veio um Fausto à mente.
    (Gostei da sua lembrança do "Sinais"; Shyamalan é um dos meus criadores prediletos: assistiu ao "Demônio"? Ih, olha o tinhosinho aí de novo).

    Um abraço, Jr!

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