domingo, 17 de julho de 2011

DOPPELGÄNGER

Tem os meus olhos - e um olhar de amplidões que eu jamais supusera. Vi-o uma única vez, quando saía de um zoológico, num fim de tarde frio, que deixara em meu ser impressões de irrealidade, especialmente depois que passei pela jaula da fênix e do basilisco. Havia poucas criaturas transitando pelas alamedas álgidas, quando ouvi aquela composição de violinos emergindo das trevas, em todo o seu esplendor, para fundir-se com um coro de barítonos sombrios que eu sentia incorporarem-se à paisagem desolada do pôr-do-sol, como um réquiem. Ele ficou parado, olhando fixamente, as mãos apoiadas no vidro de uma janela invisível, desejando algo íntimo e indevassável que eu carregava comigo, minha própria alma. Foi uma experiência tenebrosa: esqueci-me dos animais que acabara de rever e fugi, constrangido por uma estranha vibração que trespassava todo o meu corpo. E agora posso vê-lo, outra vez, olhando fixamente através da mesma janela. Não posso abri-la, deixarei tudo trancafiado! Ele é um eu esquecido, uma sombra ancestral, a não-linearidade em minha palavra. 

FERNÃO GOMES 

Um comentário:

  1. Interessou-me sobremaneira este texto, Jr.

    A sensação do duplo em um ambiente instável à sobriedade humana; o mau-agouro; o eu invadido por outros eus.

    Não vejo a hora de seu novo romance vir à baila.

    Um abraço.
    (ps.: em resposta a seu comentário em meu blog, não conheço muita coisa de ficção científica, quase nada. Tenho um Laranja Mecânica, um Paraíso Líquido (do brasileiro Luiz Bras) e nada mais).

    ResponderExcluir