sábado, 20 de agosto de 2011

CHIAROSCURO

Os espaços da estação foram tomados por uma névoa repentina. Ninguém esperava aquilo, pelo menos não daquele modo tão súbito, tão silenciosamente invasor. Monitores e relógios desapareceram quase que por completo; deles restariam vagas luminescências perdidas ao longo da grande gare, convertida num estranho campo de esquecimento. O ar gelado penetrava os vazios entre as colunas de mármore descomunais. Naquele instante, naquele perfeito e simétrico instante, ela se encostou num canto de parede, contraindo os músculos das costas ao contato imediato da superfície fria. “É preciso estar atenta em meio ao nevoeiro.” Ela se assustou com a senhora encostada à parede, ao seu lado. Ficou olhando, sem reação, tremendo de frio. “Tome; use isto.” Pôs com delicadeza um casaco sobre seus ombros, sorriu sem mostrar os dentes e se afastou, desfazendo-se na névoa. “Não perca seu trem. A hora se aproxima.” Um súbito cheiro de fritura e café construiu imagens em sua mente e despertou o ideal de família há muito adormecido. Onde estarão? Quem eram eles? Instintivamente ela olhou para cima, a fim de identificar, no jogo de luzes e sombras, as gotas de chuva, que parecia ter recomeçado. Só então entendeu que estava chorando. Enxugou os olhos na manga do casaco, fez uma prece com quaisquer palavras, para encontrar nelas o fogo ao redor do qual encolheria seu ser e desprendeu-se da parede, em direção à plataforma de embarque.   

FERNÃO GOMES

Um comentário:

  1. A-ha!

    Eu sabia que já havia lido esse texto, no ano passado, aqui, neste mesmo sítio (mas com outro título)!

    Huhu!

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