sexta-feira, 28 de outubro de 2011

PIXELS


“Você é Thom Yorke?” A cidade, submersa na tarde fria, parecia uma composição de pixels em escala de cinza. “Não sabe o que atravessei para chegar aqui”, disse a garota. “Tão perto, e tão distante.” Acabara de chover; um ar gelado percorria as ruas da cidade, transformadas em espelhos extensos em cuja superfície refletiam-se as variações metálicas do céu carbonizado. “Meu irmão está muito doente e solicita que você cante uma canção pra ele. Apenas uma canção. Você faria isso por nós?” Entreolharam-se e, sem sequer uma palavra, Thom Yorke deixou sobre o piano a canção inacabada, pegou o violão e desapareceu na tarde fria, atravessando as fronteiras que a garota atravessara para encontrá-lo. A casa estava vazia, envolvida por uma penumbra delicada e quase irreal, como um sonho que se turva ao menor movimento. Apenas um tênue rumor de vida vibrava pelos cômodos escuros. A garota girou a maçaneta e abriu vagarosamente a porta de um quarto. “Querido? Trouxe a pessoa que você pediu.” Quando Grete acendeu o abajur, Thom Yorke e Gregor Samsa ficaram frente a frente, pela primeira vez. Depois de um breve silêncio, o músico sorriu, com discreto movimento dos lábios, e sentou-se na cadeira que Grete oferecera. Gregor Samsa acomodou-se num canto do quarto e ali começou a morrer, enquanto ouvia Thom Yorke cantar a canção[1] que ele solicitara, naquela tarde fria de Praga.

FERNÃO GOMES


[1] (How to disappear completely  – Kid A, 2000).

Um comentário:

  1. Jr.

    Esse texto me deixou eufórico!

    Kafka + Radiohead!

    Tão eufórico que não consigo prestar atenção no texto de baixo!

    Um abraço!

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