quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

VISÃO


Um vulto atravessou o cruzamento de corredores e, antes que desaparecesse atrás da grande gôndola de livros, pareceu olhar em minha direção. Era uma biblioteca de vastidões, corredores e perspectivas invencíveis, andares hipnóticos que se arrojavam às nuvens, trespassados por escadas saídas das visões de Escher. Em meio ao silêncio das estranhas criaturas que se moviam por aquelas amplidões geladas, saí em busca do vulto e deparei-me com uma porta entreaberta. Empurrei-a com os pés, levemente, e entrei. “Fernão Gomes: por que está me seguindo?” Ela estava bem acomodada numa poltrona, vestido longo, pernas cruzadas. A fumaça do cigarro ondulava, finíssima, à luz da luminária disposta no criado-mudo. “Se você me deseja, devo dizer, sem cerimônias, que estou somente amando a barata. E é um amor infernal.” “Mas você não é quem antes me pareceu ser”, respondi. “Nem se parece com ela.” “Nada em mim era como aquilo que você conheceu. Eu me pareço com as coisas que invento, com as coisas que ninguém vê. Você sabe realmente para o que está olhando?” De repente, dezenas de Clarices de idades diferentes estavam em pé, dispostas ao redor, olhando em minha direção. Contemplei-as por um instante, mas fui interrompido pela pós-imagem dela: “Você também morde a própria cauda. Terá o seu esplendor.” Súbito, tudo ao meu redor converteu-se em trevas e eu senti na ponta dos dedos a lombada do livro que segurava, quando seu vulto primeiro atravessou o corredor. Eu voltara ao mesmo lugar ou então nunca dali saíra. Deixei o livro e, sentindo frio, afastei-me pelo corredor e fui me dissolvendo na perspectiva, como um holograma no fim de tarde.


FERNÃO GOMES

Um comentário:

  1. É engraçado como nossa mente humana se deixa enganar com tanta facilidade, é verdade, por mais que a tentemos disciplinar, acabamos sendo convencidos por lampejos de idéia, vultos, que nos são atraentes.
    E da maneira mais inocente possível, nos afundamos na escuridão das nossas incertezas ao descobrir que nosso vulto de imagem não se passava de uma armadilha, armada por nós mesmos.
    Parece que "a primeira impressão é que conta".

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