segunda-feira, 2 de maio de 2011

AMÉRICA (fragmento de uma releitura)

Ela volta do quarto num vestido quase curto, discretamente florido, terminando de calçar uma sandália fina, ajeitando-a no pé com o dedo indicador. Tira da geladeira umas latinhas de cerveja e as esconde num saco plástico de supermercado. Pega o baseado e diz ao ex-patrão: “Vem. Quero aproveitar esse fim de tarde.” Saem pelo corredor e sobem silenciosamente as escadas do edifício. No último andar entram por uma porta, onde se penduram avisos e advertências sobre os perigos do sistema elétrico. Pela escada estreita alcançam o terraço ocupado por máquinas, plantas e folhagens penduradas por todos os cantos: uma floresta minúscula possivelmente conservada pelo zelador do local. Avançam por entre as folhas, como se atravessassem denso bosque, em direção a um ponto escuro e oculto. Sentam-se num canto, de onde podem ver, sem ser vistos, qualquer pessoa que por ali apareça, além da paisagem suburbana e suja que se descortina em fragmentos atrás das folhagens. A índia abre as latinhas de cerveja, eles brindam e bebem. Sempre em silêncio, ela acende o baseado, fuma duas, três vezes, passa o cigarro ao sujeito, que a imita. Ele sente amortecer todo o corpo, devolve o cigarro, aproxima-se dela e beija-lhe a boca. Ela corresponde, porque era isso que queria. Pouco depois se entregam um ao outro, morrendo de tesão, enquanto as latinhas de cerveja esperam, a um canto, trocando confidências na língua que só elas entendem: “Olhe só pra esses dois”, diz uma delas. “O que é que tem?”, responde a outra. “Mais parecem uma criatura bizarra de muitos braços e pernas, rolando e se esfregando de um lado a outro.” “E o que você tem com isso?” “Eu, propriamente, nada, mas há pouco estavam ambos entre socos e hostilidades. Não se passaram minutos já estão aos beijos, abraços e carícias.” “Isso é o sexo, amiga. É assim que se explicam muitos enredos desse mundo. Humanos são contraditórios: repudiam e desejam a um só tempo as mesmas coisas.” “Como sabe tanto sobre humanos, sendo apenas uma lata de cerveja?” “Porque sou reciclável como eles. Esvaziam-me, reciclam-me, enchem-me de cerveja, dão-me um novo lacre, que é a alma estrutural das latas de cerveja, e aqui estou. Tive muitas vidas, passando de mão em mão, de boca em boca, ouvindo as narrativas dos humanos, ao longo dos anos e das estações. Se você conhece pouco sobre eles, suponho que seja uma lata nova, tem ainda muitas vidas pela frente.” “Parece que sim. O alumínio de que sou feita ainda brilha e está intacto.” “Mas terá cicatrizes como eu. Os humanos não se contentam em marcar a si próprios, deixam sinais em tudo o que tocam. É o que agora fazem esses dois, um ao outro.” “Não imaginava que ser uma simples lata de cerveja fosse tão complexo.” “Complexidade é uma questão de ponto de vista. Se quiser aprender sobre essas criaturas, fique em silêncio e observe o que fazem. Em muitos casos, como é o nosso, observar é o mesmo que experimentar.” “Como tem tanta certeza?” “Ninguém tem certeza alguma nesse mundo. E agora fique em silêncio, observe e aprenda. Essas talvez sejam as últimas palavras que dirigimos uma à outra. Adeus.” “Adeus.” E permaneceram caladas, aguardando os amantes, que logo viriam esvaziá-las.

FERNÃO GOMES

2 comentários:

  1. Talvez o subir de escadas seja elevar nossos pensamentos ao topo, ao escondido, de onde se pode olhar, analisar e pensar o que quiser sem poder ser lido pelo outro. Quem nunca falou o que queria ao outro, mentalmente, olhando-o nos olhos? Ah.. depois da primeira vez (e uma leve vergonha, medo de ser ouvido ao pensar aquilo que se quer) é uma delícia essa prática! Os dois, patrão e índia, não sei, talvez sejam o que de social e de natural a gente mais tenha. As latas falantes... essas, imagino, podem ser nossas coisas que nos acompanham e que retém também nossas memórias. As marcas? Essas, não importam. Elas sempre acontece. Acho que aprendi a descontruir! Abraços!

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  2. Esse diálogo me lembrou mais o Um Apólogo, do Machado de Assis, que o Iracema. Se bem que eu não li Iracema, então não posso afirmar com propriedade.
    Mas gosto da ideia de tornar animados os objetos inanimados.
    Já aconteceu com você de colocar um objeto num local e depois encontrá-lo em outro? Talvez a noção de humanização de tais coisas tenha uma base mais profunda.
    E quanta porcaria deve uma lata de cerveja escutar de seus possuidores bêbados, não é, Jr?

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