domingo, 29 de maio de 2011

O CACTO

Encolhido a um canto, entre passeantes e espectros anônimos, aquele sujeito, discreto e solitário, testemunhou a cena brutal, como testemunhara tantas outras, desde sua infância distante, e inacabada. Sentindo-se premido por brutalidades e com olhar alheio, feito uma figura de Rodin, desprendeu-se do mundo e, movendo-se entre miasmas e pensamentos, constatou ser necessário resistir e adverti-los. Na quietude de sua alma, pronunciou o seguinte: “Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária: Laocoonte fora constrangido pelas serpentes, como Ugolino quedara esfaimado diante dos filhos. O cacto evocava também a aridez do nordeste: a caatinga infalível, a seca inevitável. Era enorme, mesmo para esta terra de ferocidades excepcionais. Um dia um tufão furioso abateu-o pela raiz. O cacto tombou, arrebentando os cabos elétricos, atravessado na rua, impedindo o trânsito de automóveis e de seres humanos, que por ali transitavam. Durante horas privou a cidade de iluminação, de energia e de vida. Era belo, inquieto, transgressor.”

FERNÃO GOMES

2 comentários:

  1. Bandeira!
    Confesso que não sabia quem era Ugolino nem Laocoonte! Fui pesquisar e achei Manuel.
    E tornei a seu texto e percebi que os mínimos detalhes na vida de um bom observador torna-se obra de inestimável valor dentre os vapores imaginativos do ser criativo!
    Um abraço, Jr!

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  2. Vou mastigar mais, pra frente me manifesto.

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