sábado, 7 de maio de 2011

CAVALO DE TROIA

“Depois de desfiados todos os novelos, só o que me resta é esse instante, a perturbadora brevidade desse instante e com ele as cinzas do que foi a minha palavra.” Uma aeromoça passou e, sorridente, ofereceu serviços. Ele agradeceu, abraçou a valise, encolheu-se no acento. “A palavra em chamas.” Levantou a cabeça, percorreu com um lance de olhar o interior da aeronave. Quase todos adormeciam, quase tudo estava entregue às trevas. Alguns passageiros liam, outros conversavam mentalmente. Procurou uma posição que acomodasse o corpo e recostou a cabeça. “Como reconstituir a totalidade de uma existência? Como fazê-lo, se tudo de que disponho agora é este breve momento de suspensão? Quando penso em mim mesmo em qualquer passado, vejo outra pessoa, rememoro uma ficção vivida por outro. O que foi pertence a outro, a outros eus que não reconheço mais. Só este momento me pertence. Vou preservá-lo como preservo este segredo. Eu sou o Odisseu.” Segurou a valise junto ao corpo, como quem acomoda o filho ao colo, e ficou a tamborilar os dedos, pacienciosamente. A voz do comandante despertou os demais passageiros, avisando sobre uma turbulência próxima.

FERNÃO GOMES

Um comentário:

  1. Que segredos guarda esse Odisseu? A sapiência da fugacidade ou a sandice da fobia? Segredos que levam tudo à conceituação do cavalo de Troia e seu mecanismo perspicaz.

    Um grande abraço!

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