domingo, 19 de junho de 2011

JOHNNY BLUE

“Não!”, eu disse. “Absolutamente não, porque ‘não’ é a palavra mais bela que existe, porque um ‘não’ pode ser o intervalo entre todas as coisas, porque um ‘não’ pode conter a essência de todas as coisas.” Depois dessa intervenção, só o que me lembro, não obstante as fraturas de minha memória (porque sou um sujeito de memória tênue), são também fraturas, ruínas de narrativas: ela produziu movimentos desconexos, projeções sonoras incongruentes, imagens desinteligentes que passaram por minhas retinas numa sucessão de incoerências efêmeras. Confesso que aquela confusão de conteúdos sem sentido foi razão suficiente para eu me convencer de que havia uma multidão de mulheres diante de mim, tentando persuadir-me sobre suas razões e seus sentimentos. Era como se eu olhasse para dezenas de monitores, ao mesmo tempo, esforçando-me para compreender as imagens estranhas que se multiplicavam numa profusão de transdimensões absurdas. Depois disso, eu vi aquela criatura desaparecer diante de mim. Ela simplesmente se desmaterializou, deixou atrás de si o fragor da porta socando a parede. Eu sinceramente queria dizer a ela: “Fale comigo sobre amor. Fale comigo, ao menos uma vez, sobre amor.” Mas o fato é que eu disse “não”. E pela primeira vez no universo o “não” manifestou-se em todo o seu esplendor como o elemento gerador de uma doutrina, como o legítimo conceptor de uma filosofia. “Não”: a nova metafísica do ser, um novo capítulo na longa história das ontologias.

FERNÃO GOMES

Um comentário:

  1. O melhor significado do não em minha opinião é quando, apesar de não, tudo em que se traduz é no mais sonoro sim.

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