quinta-feira, 9 de junho de 2011

A ARCA


A imagem do cálice turvara-se. Teria sido o modo como ele o percebera ou aquela ondulação seria o sinal de uma estranha intervenção em sua sensibilidade? Essa inesperada conexão trouxera movimentos de um passado em cujo campo deixara marcas que não se apagam. Mas ele não devia precipitar-se para zonas de tempo sobre as quais não tinha mais controle. Qualquer distração poderia iludir-lhe os sentidos, especialmente na presença do Abade, ex-professor de Astrobiologia, que generosamente acabara de oferecer-lhe um de seus licores exóticos, produzidos com ervas dos gigantes gasosos de Andrômeda. Súbito, o Abade estava diante dele, oferecendo o cálice de licor e sorrindo com discrição: “Interferir no curso da vida é uma ideia e tanto, especialmente quando as recombinações proteicas são anômalas.” “Presumo que sim, Mestre”, respondeu, enquanto aceitava o cálice. “Anomalias e estranhamentos são potências que instigam o espírito. Afinal, muitas narrativas vivem desses espasmos.” O Abade levantou a sobrancelha e fixou o olhar no ex-discípulo. Deslocou-se até a mesa, onde deixou o cálice, pegou uma pequena caixa escura, em cujas faces deslocavam-se ondas de um estranho veludo. Entregou-a e disse: “Tenho esperanças e temores quanto a isso. Essa arca é a espada sobre sua cabeça.” Logo o veículo espacial levantou voo, circundou as torres da catedral, vagarosamente, e deslizou em direção ao céu violeta. Ao olhar uma última vez para baixo, a imagem da catedral pareceu turvar-se, como acontecera com o cálice do Abade.

FERNÃO GOMES

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